terça-feira, 10 de novembro de 2009

O URRO ANCESTRAL DA FACULDADE INJURIADA

> Universitários que encurralaram a colega de vestido curto não eram
> delirantes: eram agressores mesmo
>
> Debora Diniz* - O Estado de S.Paulo - QUINTA, 29 DE OUTUBRO
> Assédio em massa
>
> Vídeos veiculados pelo YouTube mostram a estudante de Turismo Geisy Arruda,
> da Uniban, em São Bernardo do Campo, sendo xingada e acuada por outros
> alunos por causa do comprimento do vestido. Ela teve de ser escoltada para
> fora do prédio por policiais.
>
>
> O caso não caberia nem em um folhetim vulgar, não fosse o YouTube
> denunciando a verdade. A "puta da faculdade" é uma história bizarra: uma
> mulher de 20 anos é vítima de humilhações. A razão foi um vestido rosa e
> curto que a fazia se sentir bonita. Sem ninguém saber muito bem como o
> delírio coletivo teve início, dezenas de pessoas passaram em coro a gritar
> "puta" e ameaçá-la de estupro.. A saída foi esconder-se em uma sala, sob os
> urros de uma multidão enfurecida pela falta de decoro do vestido rosa. Além
> da escolta policial, um jaleco branco a protegeu da fúria agressiva dos
> colegas que não suportavam vê-la em traje tão provocante.
>
> Colegas de faculdade, professores e policiais foram ouvidos sobre o caso. O
> fascínio compartilhado era o vestido rosa. Curto, insinuante, transparente
> foram alguns dos adjetivos utilizados pelos mais novos censores do vestuário
> da sociedade brasileira. "A roupa não era adequada para um ambiente
> escolar", foi a principal expressão da indignação moral causada pelo vestido
> rosa. Rapidamente um código de etiqueta sobre roupas e relações sociais
> dominou a análise sociológica sobre o incidente. Não se descreveu a histeria
> como um at o de violência, mas como uma reação causada pela surpresa do
> vestido naquele ambiente.
>
> O que torna a história única é o absurdo dos fatos. Um vestido rosa curto
> desencadeia o delírio coletivo. E o delírio ocorreu nada menos do que em uma
> faculdade, o templo da razão e da sabedoria. Os delirantes não eram loucos
> internados em um manicÃ?mio à espera da medicação ou marujos recém-atracados
> em um cais após meses em alto-mar. Eram colegas de faculdade inconformados
> com um corpo insinuante coberto por um vestido rosa. Mas chamá-los de
> delirantes é encobrir a verdade. Não há loucura nesse caso, mas práticas
> violentas e intencionais. Esses jovens homens e mulheres são agressores.
> Eles não agrediram o vestido rosa, mas a mulher que o usava para ir à
> faculdade.
>
> Não há justificativa moral possível para esse incidente. Ele é um caso claro
> de violência contra a mulher. Ao contrário do que os censores do vestuário
> possam alegar, não hà ¡ nada de errado em usar um vestido rosa curto para ir
> às aulas de uma faculdade noturna. As mulheres são livres para escolher suas
> roupas, exibirem sua sensualidade e beleza. A adequação entre roupas e
> espaços é uma regra subjetiva de julgamento estético que denuncia classes e
> pertencimentos sociais. Não é um preceito ético sobre comportamentos ou
> práticas. Mas inverter a lógica da violência é a estratégia mais comum aos
> enredos da violência de gênero.
>
> A multidão enfurecida não se descreve como algoz. Foi a jovem mulher
> insinuante quem teria provocado a reação da multidão. Nesse raciocínio
> enviesado, a multidão teria sido vítima da impertinência do vestido rosa. As
> imagens são grotescas: de um lado, uma mulher acuada foge da multidão que a
> persegue, e de outro, do lado de quem filma, dezenas de celulares registram
> a cena com a excitação de quem assiste a um espetáculo. Ninguém reage ao
> absurdo da perseguição ao vestido rosa. O fa scínio pelo espetáculo aliena a
> todos que se escondem por trás das câmaras. Quem sabe a lente do celular os
> fez crer que não eram sujeitos ativos da violência, mas meros espectadores.
>
> Pode causar ainda mais espanto o fato de que a multidão não tinha sexo.
> Homens e mulheres perseguiam o vestido rosa com fúria semelhante. Há mesmo
> quem conte que a confusão foi provocada por uma estudante. Mas isso não
> significa que a violência seja moralmente neutra quanto à desigualdade de
> gênero. É uma lógica machista a que alimenta sentimentos de indignação e
> ultraje por um vestido curto em uma mulher. A sociologia do vestuário é um
> recurso retórico para encobrir a real causa da violência - a opressão do
> corpo feminino. Não é o vestido rosa que incomoda a multidão, mas o vestido
> rosa em um corpo de mulher que não se submete ao puritanismo.
>
> Não há nada que justifique o uso da violência para disciplinar as mulheres.
> Nem mesmo a situação hipotética de uma mulher sem roupas justificaria o
> caso. Mas parece que uma mulher em um vestido insinuante provoca mais fúria
> e indignação que a nudez. O vestido rosa seria o sinal da imoralidade
> feminina, ao passo que a nudez denunciaria a loucura. A verdade é que não há
> nem imoralidade, nem loucura. Há simplesmente uma sociedade desigual e que
> acredita disciplinar os corpos femininos pela violência. Nem que seja pela
> humilhação e pela vergonha de um vestido rosa.
>
>
>
> *Antropóloga, professora da UnB e pesquisadora da Anis - Instituto de
Bioética, Direitos Humanos e Gênero

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