De vez em quando, o lixo vem à superfície
Aldo Cordeiro.
Ou, como diria Bertold Brecht:
"Ainda é fecundo o ventre da besta imunda" (Bertold Brecht).
Aldo Cordeiro.
Ou, como diria Bertold Brecht:
"Ainda é fecundo o ventre da besta imunda" (Bertold Brecht).
Ecos do esgoto divulgado em alguma rede social...:
"Nordestino não é gente, faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado", da estudante de Direito Mayara Petruso.
Mika Frauzola escreveu também na Internet: "Bando de nordestinos FDP...são tão burros, que qualquer idiota faz a cabeça deles...por isso que odeio nordestino".
Kewen Pantcho postou esta frase: "É tudo culpa dos nordestinos...seca eterna pra vocês!!!Dilma presidente. Parabéns, povo burro!"
O advogado André Colli escreveu: "Nordestinos FDP!!! Invasores do nosso maravilhoso Litoral Norte, devastadores das nossas reservas florestais, porcos, imundos e mal educados..."
Estas frases, explicitamente intolerantes, mais que isso, fascistas, mexeram na ferida do preconceito, provocaram reações nunca adormecidas em quem pensa da mesma forma, ou em quem se sentiu discriminado, em quem percebe que o terreno do ódio, do fanatismo, da intolerância pode causar danos e perdas monstruosas na vida de um país.
Não é muito diferente do que os alemães diziam, quando, sentindo-se humilhados após a derrota na primeira guerra, direcionaram para o povo judeu o seu ódio e descobriram neste sentimento uma razão para fortalecer a sua unidade. O sangue judeu foi pouco. Qualquer "diferente" era culpado pelo simples fato de ser "diferente", não ser ariano, a "raça superior". O ódio produziu mais ódio, e a Alemanha saiu em busca do sangue do mundo.
A guerra acabou. A lição foi profunda na carne da humanidade. Mas, aqui e ali, às vezes assustadoramente com força, surgem novos espécimes de "ovos da serpente".
Todos conhecem esta e outras tantas histórias. Estão nos livros. Difícil é perceber nas atitudes cotidianas o quanto podem estar impregnadas do germe da morte.
Quando alguém explode seu racismo em comentários deste tipo, percebemos que, em vez de um país sem preconceitos, que em algum momento acreditamos ser, na verdade continuamos carregando séculos de uma cultura que nos aprisiona, desde quando aqui chegaram os colonizadores e sua sede de exploração. Claro que, desde o primeiro contato, por crença e conveniência, os povos encontrados foram considerados sem alma, diferentes, portanto, passiveis de qualquer exploração. Mas, os índios eram rebeldes, ou fugiam. Os colonizadores satisfizeram seu apetite trazendo os negros da raiz da humanidade, a África, também eles "diferentes", divididos, enfraquecidos, exploráveis até a morte.
Os fatos mais recentes, especialmente da estudante de Direito, o mais badalado, me lembra um breve diálogo que tive há alguns anos aqui em casa. Comemorávamos com a família e alguns amigos e amigos deles nem lembro exatamente o quê. No meio do papo, uma senhora resolveu politizar o assunto.
- A culpa da situação atual do Rio de Janeiro é dos nordestinos. Vêm pra cá encher a cidade de favelas. Deveriam ser todos deportados.
É preciso ser doido ou surdo pra alguém não perceber que, apesar de mais de trinta anos morando aqui, meu sotaque, a abertura que faço nas vogais, são tipicamente nordestinos. Ninguém fala que nem nós da terrinha. Mais devagar, mais aberto. E vem alguém dizer uma coisa dessas em minha casa!
No entanto, em vez de simplesmente dar-lhe um passa fora, resolvi entrar um pouco no seu raciocínio. Até pra ver se quem fala dessa forma, mesmo com o orgulho de ter um diploma superior, raciocina...
- A senhora não acha que antes dos nordestinos, os culpados foram os negros?
Ela gostou. Sorriu e concordou. Não se havia dado conta, talvez porque ainda não se deu conta, do que foram quatrocentos anos de escravidão. Talvez não lhe importasse o contato com esse passado. Continuei:
- Mas, antes dos negros... pense: aqui viviam apenas os índios. Nem precisava haver favelas, pois eles tinha todo esse espaço entre o mar e a floresta. Tudo limpinho e cheiroso, sem esgoto. Então, chegaram os portugueses...
- Onde é que você quer chegar? O que têm os portugueses?
- Já cheguei minha senhora. Chegamos todos.
Quando chegamos a este planeta, seja qual for a explicação material ou espiritual para a nossa vinda, não escolhemos nossa cor, nosso jeito de falar, o país onde nascemos, se seremos menina ou menino, nem se gostaremos do outro ou do mesmo sexo. Não escolhemos nossa família e, muitas vezes, somos introduzidos em um credo sem termos a possibilidade de escolha. O ambiente em torno de nós, desde criança, nos molda, nos ensina, nos influencia. Ouvimos de quem nos acompanha desde os primeiros passos e vemos em seus gestos cotidianos se estão carregados de amor ou povoados pelo ódio. Nem percebemos o quanto herdamos desse conjunto de pessoas em torno de nós.
Somos todos absolutamente diferentes. Não há igualdade nem entre os dedos de nossas mãos. No entanto, as diferenças não estão na cor, na origem do nascimento, no fato de ser rico ou pobre. Ver estas características como diferenças de qualidade foi uma criação da humanidade, até por interesses de poder. Afinal, é mais fácil dominar um povo dividido, que engole certas crenças como se fossem verdades biológicas. É muito mais fácil manter uma classe social, uma casta, um grupo, afastados das benesses da natureza, se elas foram convencidas que são inferiores.
Tudo nos é ensinadas cotidianamente, inclusive pela menina ou menino por quem nos apaixonamos, pela vovó boazinha, pelas visitas que nos chegam em casa. Nosso diálogo está impregnado de nossa cultura e muitas vezes nem percebemos. Simplesmente repetimos como se nosso modo de pensar fosse um repertório de verdades.
Nossas diferenças reais estão na forma como somos artistas na vida, no dom que cada um tem de se expressar, de se comunicar, de amar.
Temos muitas semelhanças também: nossos sentimentos. Saudade, afeto, raiva, ódio, desejo de vingança ou capacidade de perdoar...
Como disse um mestre de algum canto do Oriente: tenho dois cachorros, um manso, outro bravo. Predomina aquele que alimento.
Se me alimento e às pessoas em torno de mim de ódio e preconceitos, possivelmente seremos preconceituosas e olharemos para os outros procurando diferenças que dêem a ilusão de que uns são superiores a outros, principalmente de quem nós somos somos superiores a outros.
Se alimento a mim e aos outros com serenidade e compreensão amorosa da história da humanidade, seremos fraternos e respeitosos no trato com os demais.
No entanto, depois de afetadas pelo ódio, como as pessoas cujas palavras copiei no início, o que fazer? Não sei. Merecem ser punidas, mas merecem, acima de tudo, ser tratadas. Também não sei como. Talvez tenham sofrido elas mesmas muitos preconceitos e incompreensões em suas vidas. Não havia amor junto com o pão de cada dia.
É triste e empobrecedor, em vez de curtir a beleza da diversidade, que nos encantam os sentidos com suas artes,
que alguns se fechem na concha medíocre do afastamento preconceituoso.
Como dizer isso a essas pessoas?
Aldo Cordeiro
Rio, 07.11.2010
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