ORMUZ BARBALHO SIMONETTI (Presidente do Instituto Norte-Riograndense de Genealogia-INRG, membro do IHGRN da UBE-RN e ACLA) – www.ormuzsimonetti@yahoo.com.br
Publicada em “O JORNAL DE HOJE” edição de 08/04/2011
A ARTE DA CICLOGRAVURA
Até esta data, nunca tinha tido a curiosidade de saber como haviam surgido as “garrafinhas de areias coloridas”. Qual era sua história, quem as tinha criado e como havia acontecido.
Há várias décadas que encontramos à venda. Essa arte que é feita dentro de garrafas ou outros recipientes translúcidos, utilizando apenas areias coloridas, longos palitos e uma porção enorme de talento.
Desde sua criação, essa obra é bastante difundida aqui no nordeste, principalmente no Rio Grande do Norte e Ceará, berço de seu criador, onde diversos artesãos ganham seu sustento com a produção e venda dessas peças. Seus principais pontos de vendas são os quiosques próximos as praias, em mercados de artesanatos, centros turísticos etc., além de serem muito exportadas para o centro-sul do país e até mesmo para o exterior.
O preço varia de acordo com o tamanho do recipiente, e também com a complexidade do desenho. Quanto mais elaborado, maior o seu preço. As peças menores giram em torno de R$ 10,00 por unidade. Quanto às maiores, podem chegar a custar até R$ 1.000,00, ou mais. Algumas são tão perfeitas que chegam a ser confundida com uma pintura. Custa a acreditar que são feitas apenas com areias multicoloridas, paciência e muita habilidade.
Como acontece há vários anos, eu estava na praia da Pipa, por ocasião dos festejos carnavalescos. Aliás, desde o mês de novembro que estou “veraneando”, - privilegio dos aposentados – quando certa ocasião, passando ao lado da Igreja Católica em direção a rua de cima, vi um artesão trabalhando na confecção das garrafinhas. Ele estava sentado em um banquinho, abrigado do sol por uma surrada sombrinha de praia, concentrado em seu lavor. Por diversas vezes já o tinha visto naquele mesmo local, porém, desta feita resolvi me aproximar. Com uma das mãos segurava a peça de vidro e com a outra, ia aos poucos, derramando porções de areias muito finas e de diversas cores, que retirava de pequenos recipientes, dispostos em cima de um tabuleiro. A todo instante derramava um pouco daquelas areias dentro do vidro e com um fino palito, dava formas a paisagem que pretendia fazer. Naquele momento reproduzia o que trazia em sua mente: morros, coqueiros, barcos na linha do horizonte, uma casinha de palha. Tudo muito bem harmonizado, acompanhando a forma circular dentro daquela pequena garrafinha.
Parei para observar o artista em plena criação. Era um trabalho lento, de muita paciência, e habilidade com as ferramentas rudimentares que utilizava. Mas, acima disso tudo, observava o talento para reproduzir através da arrumação dos vários tons de areia, a paisagem por ele imaginada ou às vezes, que fora previamente encomendada por alguém.
Como gosto de observar as pessoas no seu cotidiano, fiquei a apreciar o seu trabalho. Por ser muito cedo, e ainda não havia movimento na rua, achei que seria um bom momento para iniciar uma conversa. Tive o cuidado de deixá-lo completamente à vontade, pois temia que minha atitude atrapalhasse o seu trabalho. Assim deixei que ele decidisse se estava interessado em continuar o bate-papo, ou não. Logo que o cumprimentei, fui surpreendido com sua enorme vontade de conversar. Apaixonado pelo seu trabalho e ávido para falar de sua história e da sua arte, conversava sem parar, porém, suas mãos habilidosas continuavam a executar sua criação. Aos poucos ia surgindo dentro daquele cilindro de vidro, que estava se reciclando por já ter cumprido sua finalidade inicial, a bela paisagem de uma praia que existia somente na imaginação do artista.
Todos o conhecem por Bobô, apelido que traz de sua infância na cidade de Aracati, no Ceará, onde nasceu. Mora na praia da Pipa há algum tempo. Chegou ao nosso Estado em 1991, trazido por sua mãe que era parteira numa cidade do interior do Ceará e veio para o Rio Grande do Norte contratada para exercer a mesma função, na cidade de Nísia Floresta.
Um dia Bobô resolveu conhecer a praia da Pipa, informado que por aqui passavam muitos turistas, o que lhe oportunizaria a venda de um maior número de suas garrafinhas. Seguindo o exemplo de outros que por aqui chegam e “encalharam”, nunca mais voltou.
Ele contou que esta arte maravilhosa praticada por ele, que é responsável, desde sempre, pelo seu sustento e de sua família, é denominada de ciclogravura - confecção de gravuras em garrafas utilizando areias coloridas -, e que surgiu na década de 50, na praia de Majorlândia, no Ceará. Em seu relato afirmou que havia uma senhora por nome de Joana Carneiro, que enchia garrafas com areias de diversas cores, colhidas nos morros da região. Ao enchê-las, alterava as cores em formas circulares, com espaços em torno de dois centímetros para cada porção de areia colocada. Presenteava as pessoas e às vezes chegava a vender para visitantes que chegavam de Fortaleza para passar temporada de veraneio.
Certa vez, fazendo esse trabalho, encheu um litro com as tais areias quando, momentos antes de concluir o trabalho, o litro virou. Como o recipiente ainda não estava completamente cheio, as areias se projetaram para o lado e acidentalmente formou um desenho, que aos olhos de seu filho, presente na ocasião, pareceu-lhe uma paisagem.
O filho dessa senhora se chamava Antônio Eduardo Carneiro, que tempos depois ficou conhecido como “Toinho da Areia Colorida”. Dias depois ao tentar reproduzir uma paisagem dentro de uma garrafa, utilizando as areias coloridas, descobriu que tinha habilidade para “desenhar com as areias” o que estava em sua mente. Surgia nessa ocasião um grande e talentoso artista. Daí pra frente nunca mais parou.
Diante desse relato, podemos dizer que foi ele o precursor dessa arte tão difundida em todo o litoral nordestino. Hoje, do auto dos seus quase 80 anos de idade, raramente trabalha na confecção dessas garrafinhas, que apesar dessa denominação, outros recipientes também são utilizados na sua confecção como: cálices, tulipas, bojos e vários outros tipos e formas de invólucros, desde que de vidro transparente e sem cor, para que as cores das areias sejam apreciadas com toda fidelidade.
A grande maioria das areias que são utilizadas nesse trabalho tem sua coloração feita pela natureza. Somente a cor verde e azul é produzida a partir da areia de cor branca, com adição de corantes. Os tons mais claros ou escuros são obtidos a partir da mistura das cores existentes.
Toinho, como é conhecido, deixou sua marca mais visível em frente à pousada “Refugio Dourado”, na praia de Majorlândia-CE, ao fazer duas esculturas gigantes, aproveitando uma barreira situada ao lado da pousada.
Assim como aconteceu com o Mestre Vitalino, de Caruaru, criador dos mundialmente famosos bonecos de barro, sua arte inicialmente foi repassada para vários de seus descendentes e familiares. Hoje sua técnica é conhecida por inúmeros artesãos, principalmente no nordeste, aonde alguns chegaram até mesmo a aprimorá-la.
Esses artífices costumam produzir seus trabalhos a vista do público, artifício que utilizam para atrair a atenção dos transeuntes e facilitar as vendas. Com um pouco de sorte, conseguem, vez por outra, alguma encomenda de maior porte.
Esses artesãos são encontrados com certa facilidade principalmente nas praias do Rio Grande do Norte e Ceará, próximos aos pontos de venda. Certa vez, em Fortaleza, tive a oportunidade de ver, numa feirinha que ficava na orla marítima em frente ao hotel que eu estava hospedado, um desses trabalhos exposto a venda, que me causou admiração. Em um recipiente redondo com média de 30 cm de diâmetro por 15 cm de altura, o artista tinha retratado uma onça pintada (panthera onça), símbolo da fauna brasileira, bebendo água em um riacho no meio de uma floresta tropical. A perfeição na reprodução da pelagem daquele animal era algo extraordinário. Fiquei maravilhado com a técnica com que o artesão conseguiu reproduziu utilizando somente as areias coloridas, aquele animal dentro de seu habitat natural.
A exemplo de outras descobertas como o Raio X (1895); a Penicilina (1928); os três adoçantes artificiais, largamente utilizado pelo sexo feminino na constante luta por uns quilinhos a menos, ciclamato (1937), aspartame (1965) sacarina(1879); o forno microondas (1946), a borracha vulcanizada (1836) e mais recentemente o Viagra, alegria e realização de muita gente que a muito já havia perdido a esperança (1992), todas foram feitas por acaso. As belas garrafinhas de areias coloridas, infinitamente menos importante, mas que alegram os olhos de turistas de todo o mundo, também nasceu de uma casualidade aliada ao talento e a curiosidade humana.
Pipa, fevereiro/2011
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