quarta-feira, 21 de setembro de 2011

CANTARES

I

Porque aqui dentro tudo me cabe

espalho lótus pelos corredores.

Do outro lado da mesa

meu coração amadurece espinhos

e já não sou essa que sou,

meu coração está plantando farpas.

O que antes era cortina e aconchego

caiu terrivelmente sobre mim

(sentimento que conheço de antemão).

Antecipo ciúmes e indagações.

A alma lateja, reveste-se de prece,

o coração emudece nos corredores da boca.

II

Aprendo encantamento

com tuas poucas palavras.

Noites? São muitas

mas tu estendes a vigília no vazio das horas mortas

até configurar-se no amor que me dás

e que não vejo.

Armadilha de pequenos sóis

envoltos em papéis de seda.

Deus está no perigo,

na hipótese da seta lançada.

Jamais sairia ilesa

deste teu escuro.

III

O anjo que me guarda

acordou cruel demais.

Postou filete de sangue na porta

parte de sua própria carnadura

e me trancou toda por dentro.

Saiu às ruas, em claro testemunho

e escreveu latente no portão: aqui jaz.

Despiu-se da pele de anjo

cortou suas longas asas

e foi morar entre pernas

onde todo perfume é doce.

IV

Perco folhas expondo ternura.

Pinto cavernas em transe absoluto.

Me percorri extrema e cuidadosa

para vir do fundo, esquiva e retalhada.

Há mistério de nudez sagrada

na estátua branca de ventre exposto.

Desvendei a secreta passagem

do teu lado esquerdo.

Canto um hino sacro

em volta do oratório herdado.

Queimo minha língua imerecida

no incenso do teu corpo.

Em amor, me refazendo.

V

Acredito em tardes e ruínas

e imperfeições não me salvam.

O outro me olha desconfiado

e o que sou eu escurece

enquanto enfia o pé na meia.

Não há palavras para serem ditas

nem silêncios para serem suportados.

As escamas do teu olho

são minha única certeza.

Se partes, eu fico

situada entre artifícios

e asperezas.

VI

Sobrevivo às palavras duras

e reinvento o resto da paisagem.

O tempo não é de resguardos,

ele exige impetuosidades

e delicadas insinuações.

As mulheres que fui

fundiram-se nos quatro cantos

do teu abraço.

Sou preguiçosa demais para ser vasta.

Não arrebento margens em vão.

VII

Por mais que eu te diga concha, água, âncora

não me escutas.

Desmanchada pelos vendavais

contemplo minha herança em sobressalto

e retraio-me ante tanta escuridão.

Depois, há o tempo

refazendo os caminhos

com meus próprios medos.

Cansa-me o gesto repetido

tua canção antiga

e a solidão alheia.

Sou minha própria inquisição.

VIII

Quem, senão eu me refazendo extensa

com dentes e pasto e mordeduras,

sorvendo as horas que não passam,

aprendendo demoras?

Desfio pequenos rosários

e não encontro o mais fundo de ti.

Então escrevo, procuro em vão

minha cálida matéria.

Que eu te leve torto,

suspenso, sem qualquer asa

porque a mim importa

a peçonha aveludada,

a dor mais funda

quando me percorres.

IX

Não te reconheço.

Nem mesmo entendo teus dons,

tuas noites queimantes,

tuas horas flamejantes

de seculares desejos.

O que é o amor

esse menino que me seca todos os dias?

O que eu busco escondido

nuns olhos claros de água salobra?

Tenho as narinas e as veias estufadas.

Meu verso não suportaria

o peso da palavra não

na tua boca.

X

No canto do mundo

há um doce estranhamento.

Minha pouca vestimenta

é uma grande ameaça

para quem não fala

minha estranha língua.

Quem ousa entrar

na casa dos meus ontens

sem nojo do meu grito?

Estou à beira de uma palavra

e nada salva

esta última chama acesa.



Jeanne Araújo
Ceará Mirim - RN



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