sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Nos 90 anos de José Saramago




Lembrar o militante das palavras imprescindíveis
Se fosse vivo, José Saramago tinha completado, no passado dia 16, nove décadas de um percurso construído a pulso, agraciado por prémios e honores, mas que teve no reconhecimento e estima dos povos talvez a maior das distinções. Caminho vincado pela repulsa à injustiça, à cupidez, ao obscurantismo e à exploração, e que por isso andou unido à luta pelo projecto revolucionário do Partido Comunista Português, que quis que fosse o seu para sempre.
Natural da Azinhaga, Golegã, onde nasceu em 1922, encontra-se em Lisboa ainda não havia completado dois anos. Apesar disso, mantém a ligação à aldeia e aos avós, a quem dedicará o discurso proferido a 7 de Dezembro de 1998 na cerimónia oficial de atribuição do Prémio Nobel da Literatura, salientado-os como portadores da maior das sabedorias, mesmo sendo gente simples.
A necessidade de contacto com as árvores, a terra – que lembrava ter pisado descalço até aos 14 anos – também conservará. Em Lisboa, à sombra de uma oliveira centenária da Azinhaga e na terra de Lanzarote, a ilha que o acolheu em 1993, foram depositadas as suas cinzas, em 2009. Fronteiras à sede da Fundação com o seu nome, criada em 2007, estão duas placas de mármore assinalando outra relação impressiva: a Mafra e ao Convento, de cujas gentes e construção fala no Memorial, obra que, como outras (O Evangelho Segundo Jesus Cristo ou Caim, por exemplo), desencadeou as imprecações dos que alojam o pensamento em espaços lúgubres.
A pobreza foi o quotidiano dos primeiros anos de vida de Saramago. O seu nome já o indiciava, pois Saramago foi a sua graça por via do conservador, que o registou com a alcunha dada à sua família de camponeses sem-terra, os quais, em períodos de carência, forravam o estômago com a homónima planta herbácea.
Na capital, adolescente, passa do ensino liceal para o profissional por falta de condições económicas. Serralheiro mecânico foi nos Hospitais Civis de Lisboa, e depois administrativo e funcionário da Previdência. E desenhador e director e produtor literário nos anos seguintes. Muitas das suas noites eram passadas na biblioteca do Palácio das Galveias lendo tudo e o mais que podia.

Já pai da sua única filha, Violante, Saramago, então, com 25 anos, publica o seu primeiro romance – Terra do Pecado –, interrompendo outras publicações até voltar em 1966 com os Poemas Possíveis. Continua porém a escrever. Clarabóia, editado postumamente, é um exemplo da insistência em semear no papel as palavras imprescindíveis que nos deixará a florecer, assim como o é o Provavelmente Alegria, dado à estampa em 1970.
Entre a segunda metade da década de 50 e o início o 25 de Abril de 1974 é aliás intensa a sua actividade nas artes e letras. Trabalha na editora Estúdios Cor, conhece e trava amizade com grandes autores portugueses, traduz afincadamente importantes escritores estrangeiros, faz crítica literária na Seara Nova, publica crónicas nos jornais A Capital e Jornal do Fundão (compiladas em 1971 e 1973 sob os títulos Deste Mundo e do Outro e A Bagagem do Viajante), integra a redacção do Diário de Lisboa, cujo suplemento literário dirige (As Opiniões que o DL teve, sairá em 1974).
Desde logo, Não
O seu afastamento da Administração Pública em 1949 devido ao envolvimento na candidatura de Norton de Matos à Presidência da República é a primeira das retaliações que sofre por insistir em dizer Não. «Não» é palavra de que gosta particularmente, sublinhará mais tarde. «Não» dirá tantas vezes quantas as necessárias assumindo as consequências da sua condição de comunista, militância que abraça em 1969 quando ingressa no PCP, e que lhe vale ao longo da vida, e mesmo depois desta se finar, ódios de classe e mesquinhas vinganças. Tais são os casos do período em que foi director-adjunto do Diário de Notícias, em 1975 (na semana que precede o 25 de Novembro a livraria do DN no Chiado sofre mesmo um atentado bombista), da recusa da sua candidatura ao Prémio Literário Europeu, em 1992, por parte do então governo cavaquista que minguava Portugal engrandecendo Sousa Lara, ou da escusa do actual Presidente da República em comparecer nas cerimónias fúnebres de Saramago, em Junho de 2010. Comparecerá o povo. E em massa, celebrando-o como o trabalhador das letras que mostrou ser.
Construtor de Abril colaborando com os ministérios da Educação e da Comunicação Social, com publicações e organizações unitárias progressistas, integrando o colectivo partidário e voltando à tradução de obras de grandes vultos da literatura mundial proibidos pelo fascismo pelo carácter revolucionário de obras e autores, José Saramago convive com o povo que em Lavre, Montemor-o-Novo, constrói «a menina dos olhos da revolução». Levantado do Chão é um hino à Reforma Agrária. Os 30 anos da publicação do livro foram lembrados em 2010 pelo PCP, homenagem que, naturalmente, o foi também ao militante que sempre que possível disse presente, fosse na Festa do Avante! ou na integração de candidaturas eleitorais e cargos de representação confiados pelo Partido.
Nobel escritor
Saramago abraça em exclusivo e com sucesso global a carreira de escritor a partir do fim dos anos 70. O impacto da sua obra evidencia-se na contaminação de outras formas de expressão artística, casos das cantatas «A Morte de São Lázaro» (inspirada em O Memorial do Convento) e «O Ano de 1993», do libreto da ópera «Il dissoluto assolto», das óperas «Blimunda» (a partir de O Memorial do Convento) e «Divara» (esta última adaptada de uma das suas peças de teatro, In Nomine Dei), das representações de A Jangada de Pedra e de o Ensaio sobre a cegueira e as adaptações destes dois para o cinema.
Em 1998, é agraciado com o Nobel da Literatura. Na véspera daquele 8 de Outubro, o escritor que será a par de Camões e Pessoa o português mais traduzido, tinha estado a debater junto com outros escritores e militantes do PCP o que é «Ser comunista hoje». Depois de se atirar ao estado do mundo, gracejou que lhe deviam dar o prémio Nobel da Economia.
Em Lisboa, dias depois, os seus camaradas, amigos e muitos populares, recebem-no em festa. O Centro de Trabalho Vitória está à cunha na tarde de 14 de Outubro de 1998. Muitos acompanham depois Saramago, que se desloca ao Terreiro do Paço para saudar uma concentração da CGTP-IN contra o pacote laboral. Na luta, sempre contra o capitalismo. É por isso mesmo que a 10 de Dezembro de 1998 leva ao banquete de atribuição do Prémio Nobel a fome dos explorados causada pelos exploradores.
«Cumpriram-se hoje exactamente 50 anos sobre a assinatura da Declaração dos Direitos Humanos. (…) Neste meio século não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que estavam moralmente obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.
«Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aqueles que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava de ideal de democracia», declara.
Palavras semelhantes repetirá no muito mundo que percorrerá até ao limite das suas forças. Em salas de conferências apinhadas ou em praças com multidões que o saúdam e à apresentação de um novo livro, ambos afirmando-se contributos para a transformação revolucionária da sociedade.
Palavras do Partido para o escritor e camarada
«Escritor de grande mérito artístico e de indiscutível prestígio nacional e internacional, José Saramago é simultaneamente uma figura singular na vida cultural, social e política do nosso país.
A atribuição, hoje, do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago, para além de justamente consagrar um grande escritor e a sua obra, constitui igualmente um importante contributo para uma maior afirmação da literatura de língua portuguesa no mundo e para o reconhecimento do português como língua de referência importante na cultura mundial».
Nota da Comissão Política do PCP, 8 de Outubro de 1998
«Ao contrário das primeiras informações de reportagem relativas à apreciação do sentido da obra de José Saramago pela Academia Sueca ao atribuir-lhe o prémio Nobel (“captação de uma realidade ilusória), a tradução oficial da Academia em língua portuguesa expressa “que com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia, torna constantemente compreensível uma realidade fugidia”.
De facto, em Saramago, a ficção, a fantasia, a imaginação e o sonho estão profundamente ligados à realidade e à sua interpretação.
Na história, no Memorial do Convento e na História do Cerco de Lisboa. Na nossa actualidade, nomeadamente da Revolução de Abril e da Reforma Agrária, em Levantado do Chão. Na criação artística, sua interpretação e relações do artista com a sua obra, em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Na real inquietação, angústia e incertezas do futuro que provoca o mundo actual, com uma advertência da crueldade dos seus horrores, em o Ensaio sobre a Cegueira. De um olhar sobre a natureza humana, sua contradições, suas forças e suas fraquezas, em O Evangelho segundo Jesus Cristo. Uma obra escrita num estilo moderno, criativo e novo que revela a assimilação da riqueza da língua portuguesa nos clássicos da nossa literatura».
Testemunho de Álvaro Cunhal à imprensa, 9 de Outubro de 1998
«Escreve mais, camarada, participa com a tua militância escrevendo tanto quanto puderes. Porque cada livro teu, cada livro do “comunista e escritor” que és, constitui um contributo precioso, inestimável para a nossa luta – para esta luta difícil, complexa e sem fim à vista que é a nossa luta pela justiça social, pela liberdade, pela paz, pelo socialismo, pelo comunismo – pela felicidade».
José Casanova, 10.º aniversário da atribuição do Nobel a José Saramago, Festa do Avante!, 6 de Setembro de 2008
«Há dez anos, festejámos aqui, com o camarada José Saramago, a grande notícia que a todos encheu de alegria e de orgulho: a alegria de sabermos que o Prémio Nobel da Literatura era, pela primeira vez, um escritor português e da Língua Portuguesa; e o orgulho, natural, pelo facto de esse escritor ser um camarada, um membro do nosso Partido Comunista Português».
Jerónimo de Sousa, no 10.º aniversário da atribuição do Nobel a José Saramago, 8 de Outubro de 2008, CT Vitória, Lisboa
«Construtor de Abril, enquanto interveniente activo na resistência ao fascismo, ele deu continuidade a essa intervenção no período posterior ao Dia da Liberdade como protagonista do processo revolucionário que viria a transformar profunda e positivamente o nosso País com a construção de uma democracia que tinha como referência primeira a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo e do País».
Nota do Secretariado do CC do PCP, 18 de Junho de 2010
Construtor da Festa que nunca o esqueceu
«Nos dois ou três primeiros anos da Festa, eu tive uma certa actividade na montagem de alguns pavilhões, sobretudo da área cultural. Não foi grande coisa, mas leva-me a pensar naqueles militantes dedicadíssimos que, ano após ano, sem pedir nada em troca senão a sua própria satisfação de estar presentes na montagem, na organização da Festa, e deixar-lhes aqui uma pequena homenagem, que tem a ver com a militância, mas que talvez tenha que ver também com mais alguma coisa que a militância. Uma militância pode cumprir-se com mais ou menos satisfação, mas aí há alguma coisa mais, quer dizer, a Festa passou a fazer parte da existência, da vida de milhares e milhares de camaradas e amigos nossos, que todos os anos aparecem ali, que se apresentam como voluntários, sem retribuição, para trabalhar.
Trabalhar para a Festa? Com certeza, claro. Mas, no fundo, ao trabalhar para a Festa, trabalham para o País, trabalham para o futuro e trabalham para um sentimento de comunidade e de solidariedade, de que o Partido é, talvez, o exemplo mais flagrante de toda a sociedade portuguesa.
Não me despeço senão com um até para o ano e já nos iremos encontrando por aí, enfim, quando haja uma oportunidade.
E recordaremos aquilo que temos podido fazer em benefício do Partido e aquilo que nos propusemos fazer no futuro. Estamos todos bastante bem e, sobretudo, com este sentimento de que cumprimos gostosamente um dever, dever esse que se transforma em qualquer coisa que se tornou indispensável.
Vocês, meus caros, para quem a Festa é indispensável, são também indispensáveis à Festa. Aí está. Muito obrigado».

Mensagem de José Saramago aos construtores da Festa do Avante!, 6 de Setembro de 2008, reproduzida na comemoração do 10.º aniversário da atribuição do prémio Nobel, realizada na Quinta da Atalaia

Publicado no jornal Avante! – em 22/12/2012

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Teremos o maior prazer em receber seu comentário.