Maria Eugénia Cunhal
Maria Eugénia Cunhal é a mais nova dos quatro filhos da família Cunhal, tendo nascido em Lisboa, em 1927. É catorze anos mais nova que Álvaro Cunhal, mas esta grande diferença de idades não impediu que sempre tivessem tido uma relação muito forte. Os outros dois irmãos morreram muito cedo, pelo que aos seis anos o seu único irmão era Álvaro Cunhal.Maria Eugénia Cunhal é escritora, tendo publicado O Silêncio do Vidro, livro de poemas da juventude e História de Um Condenado à Morte. Maria Eugénia esteve sempre ao lado do irmão, dando-lhe todo o apoio possível, na clandestinidade; na prisão, onde o visitava quando havia autorização para isso, chegando mesmo a ser detida para interrogatórios, quando Cunhal estava na clandestinidade e era procurado pela PIDE; e mesmo depois do 25 de Abril, sendo a sua residência, na Rua Sousa Martins, em Lisboa, que funciona como morada oficial - e única conhecida - de Álvaro Cunhal |
Maria Eugénia Cunhal, quem a
conhece, quem alguma vez falou com ela e leu os seus livros, sente que ela e a sua militância e os seus livros, o ser humano que ela é, estão
naqueles poemas e contos e crónicas. Estão lá até ao âmago do seu ser.
Porque neles sentimos não só o
seu entendimento do mundo e das pessoas, mas até o seu olhar e o seu respirar:
aquele escrever compassado, aquele escrever falando-nos tão humanamente,
falando e parando e escrevendo «Desceram a escada, a luz apagou-se.
- Anda, agasalha-te.
Abriram a porta da rua. O
vento bateu-lhe na cara. Deu a mão à mãe. Chegou-se mais a ela sem
compreender.»
Que voz, que por ser tão
repassada, diria de compaixão, de solidariedade, é apenas murmurada, mas tão
profundamente. Porque esta escrita vem do sangue que alimenta o pulsar do
coração, por isso é comovida, por isso é bela.
Desde que escreve, desde que
respira, Maria Eugénia Cunhal fez a sua opção.
Editado em 1962, «Silêncio de
Vidro», o seu primeiro livro, é repassado de estar com os outros, de reparar e
ir com os outros no obscuro das suas vidas pobres e oprimidas. Nele os poemas
são habitados por gente humilde e ela escreve: «Um pescador morreu. / No canto
ignorado duma barraca pobre.»
E mais adiante noutro poema «–
A renda do quarto não está paga, / Três dias de trabalho por semana – / … O
Águas chutou, Mateus defendeu, a bola avançou… / – O teu filho Manuel? / Lá
está de cama.»
E ainda um outro poema que
termina assim: «Pois quando vieres /Não és só tu que vens. /É todo um mundo
novo que despontará lá fora. /Quando vieres.» Por isso, este livro é também
habitado pela esperança.
E é vinte anos depois, em
1983, que «História de Um Condenado à Morte» é editado pela Barca Nova. Livro
de poemas, escrito de uma forma quase epopeica, de uma grande originalidade,
livro que pela sua beleza e pela sua afirmação de humanidade, devia de ser lido
nas escolas, pois, na sua solidariedade, é um manifesto em que o ser humano
como um ser pleno se identifica afectivamente com todos os outros seres animais
ou vegetais, portanto um livro de redenção, de dignidade, de poderosa poesia
escrito com contenção e disciplina. Um livro em que cada instante é um agora
sucessivo: «Em cada já /Se nasce /Para ser //E só em cada já /Se pode estar
///Foi /Ou será /Quem é //Como no mar /Onde a onda é um onde /Contínua sucessão
de jás /Num só quebrar.» Um livro onde o ser humano por amor à vida, por amor à
humanidade nasce a cada momento que passa, renasce, reaprende, se reaprende e
nesse reaprender se liberta. E edifica a sua consciência. Um livro onde se lê
«Pois /Livre é ao nascer /Livre se expande //Se o homem /Quiser //E o homem
/Vai querer».
Mais tarde, no ano 2000,
editado pela «Escritor» «As Mãos e o Gesto», também a mesma fidelidade e uma
maior contenção. Aqui a poesia de Maria Eugénia interroga, conscientiza,
solidariza-se. Escreve «Lá fora /No frio da noite sei que a lua nasceu /Sei que
no cais há barcos que esperam /E gente, como nós, a aguardar a hora impossível
da partida».
No seu intimismo contido é o
ser humano face à sua própria solidão, à sua circunstância: os sonhos que nos
embalaram e que o tempo foi embaciando, o que ficou pelo caminho, o que
queríamos que fosse e não foi, o amor que se queria tão dadivosamente e tão
desperto: porque é que tudo não foi mais, só mais alguma coisa?
No entanto, o outro, o reparar
no outro, o ser solidário continua na voz e na respiração desta poesia.
É que a poesia em Maria
Eugénia Cunhal nunca é, nunca será só palavras ou só o prazer da escrita ou só
o brilho do poema… A sua poesia é, e, é, visceralmente, porque também ela
própria é solidariedade, afecto. Portanto a sua poesia é como o diz este seu
poema «Pensa que a poesia não nasce/ por acaso/ Atrás de cada frase há por
vezes muito sangue/sofrimento/ Ou alegria ou amor ou desespero/ Ou qualquer
outro sentimento humano/ dos mais fortes.»
Também o seu livro de contos,
«Relva Verde Para Cláudio», editado pela «Escritor» em 2003, é claro e
verdadeiro, humaníssimo, na sua escrita poética, intimista, e ao mesmo tempo
tão solidária, tão junto dos outros: dos humilhados, dos injustiçados, dos sós
que vivem nas sombras frias que são as suas próprias vidas…
Que estes contos pela sua
contenção de escrita, pela sua respiração compassada, pelos seus silêncios de
frase para frase são dos mais belos e comovedores que tenho lido. Por eles
perpassa a solidão, a velhice que se ampara uma à outra, a ternura que comunica
nas pequenas coisas que o amor com o tempo descobre, a ternura para com as
crianças ainda não maculadas e por isso ao contrário dos adultos ainda capazes
de serem próximas umas das outras. Os gestos, os pequenos e banais gestos que
nestes contos nos surgem nimbados de poesia e humanidade: o barbeiro, a
empregada de costura, o funcionário já gasto no seu viver tão monótono e
burguês.
Toda uma galeria de
personagens nos são dadas como se ouvíssemos uma música baixinho e onde
espreitam cintilações.
Assim também na «Escrita de
Esferográfica», editado pela «Voz do Operário» em 2008, onde na crónica que se
intitula «Memória», Maria Eugénia escreve «O cheiro dos pinheiros, da maresia,
das urzes, da praia, da minha infância onde aprendi que entre nós e a natureza
não existe barreiras».
Neste livro, a escrita, é
precisa e contida, os textos são exemplarmente desenhados, o seu princípio,
meio e fim completamente conseguidos. E tão humanos.
E é sempre um rumor brando de
vento que perpassa, é sempre um olhar, uma atenção a todas as pessoas: as
solidões que passam por nós. O cinzento igual e monótono de todos os dias, sem
sorrisos, sem viço. E de repente é como se à beira do passeio, entre as pedras
despontasse uma flor, um sorriso. E a tristeza da vida é rompida por um raio de
sol.
São estas preciosidades que
fazem a escrita de Maria Eugénia especial, diferente – este reparar nas
pequenas grandes coisas do dia-a-dia que nos tocam e comovem ao lê-la e dá
beleza aos seus textos.
A voz de Maria Eugénia Cunhal
– as suas palavras escritas, tão contidamente, desenhando os seres humildes, os
sofredores, os solitários de uma solidão sofrida em silêncio. «– Não se
esqueça. Daqui a uns cinco ou seis dias pode vir buscá-la.
Ficou à porta a vê-la
juntar-se ao grupo.
- Buscar o quê? – perguntaram.
- Ora! – disse, encolhendo os
ombros.
Já dentro do carro acenou-lhe
um último adeus que morreu na poeira da estrada.»
Quando
vieres
Encontrarás tudo como quando
partiste.
A mãe bordará a um canto da
sala...
Apenas os cabelos mais brancos
E o olhar mais cansado.
O pai fumará o cigarro depois
do jantar
E lerá o jornal.
Quando vieres
Só não encontrarás aquela
menina de saias curtas
E cabelos entrançados
Que deixaste um dia.
Mas os meus filhos brincarão
nos teus joelhos
Como se te tivessem sempre
conhecido.
Quando vieres
nenhum de nós dirá nada
mas a mãe largará o bordado
o pai largará o jornal
as crianças os brinquedos
e abriremos para ti os nossos
corações.
Pois quando tu vieres
Não és só tu que vens
É todo um mundo novo que
despontará lá fora
Quando vieres.
Eugénia Cunhal, in «Silêncio de Vidro»
Eugénia Cunhal, in «Silêncio de Vidro»
Publicado no
Jornal Avante! – 21/8/2013
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