quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

JOSÉ GOMES FERREIRA - ILUSTRE POETA PORTUGUÊS

O sonho não se rende
Lobo José Gomes Ferreira, poeta militante

Eu
para aqui esquecido no século XX
enviado especial do Pesadelo a mim mesmo,
sozinho
vigilante
vejam:
Testemunha de olhos secos
                                                                   José Gomes Ferreira
 Um dos nomes cimeiros da lírica portuguesa do século XX, exímio inventor de metáforas, driblando, como poucos, os signos imagéticos da linguagem poética, nasceu no Porto a 9 de Junho de 1900. Tenho a idade que o século vinte tiver, portanto, dizia quando instado a pronunciar-se sobre a idade, acrescentando com ironia, em jeito de fuga: Até 2000 ainda espero... Depois desisto.
Nascido de uma família de fortes tradições republicanas – o pai, Alexandre Ferreira, orador fluente e combativo, foi deputado por Lisboa na 1.ª República Democrática e fundador da Universidade Livre que o fascismo, obviamente, fecharia em 1926 – cedo começou a interessar-se pela leitura (aos cinco anos já sabia ler, diz-nos ele nas suas memórias), pela música e, por influência paterna, pelos ideais republicanos.
Em 1906, a família muda-se para Lisboa, cidade onde o jovem José Gomes fará a escola primária e, já depois da implantação da República, os estudos secundários no Liceu Camões e, mais tarde, no Gil Vicente. Regressemos às suas memórias:
A minha aprendizagem musical começou também por esse tempo: lembro-me de que mal comecei a juntar as notas escrevi ao alto numa pauta: Sinfonia Lusitana. E embora os meus conhecimentos musicais fossem então reduzidos (nunca foram, aliás, profundos), dediquei-me com entusiasmo à composição, aventura que culminou com a execução de um Poema Sinfónico pela orquestra do David de Sousa, no Politeama de Lisboa, tinha eu 17 anos.
Dos professores, recordo-me principalmente de João Soares, e do Padre Fiadeiro, antigo confessor da rainha D. Amélia e meu professor de Português. Mas será na sua passagem pelo Liceu Gil Vicente que conhecerá um grupo de professores que o marcará nesse período e cuja influência será determinante no desenvolvimento do gosto pela literatura, no incitamento poético e na constituição de uma sólida personalidade atenta às inquietações do seu tempo, humanista e solidária: Leonardo Coimbra, Newton de Macedo, Ângelo Ribeiro, Câmara Reis. Descobre, nesse período, a poesia de Teixeira de Pascoais, Gomes Leal, os romances de Raúl Brandão, aos quais acrescenta, de moto próprio, Tolstoy, Dostoievsky e Gorky.
Essa prática poética inicial, incipiente segundo as suas palavras, culminará com a publicação do livro Lírios do Monte, em 1918. Rejeitará essa obra de estreia, porque, segundo afirma, se terá tratado de um equívoco adolescente, de pires desabafos campestres.
Alexandre Pinheiro Torres, o seu mais atento crítico, tentará, sem grande convicção, pôr alguma água na fervura: Neste livro de estreia há já o despontar de uma vaga solidariedade social, de tipo romântico, que se corporiza na figura abstracta do Cavador, que o moço poeta classifica de «Mártir». Intuitivo mas atento e lúcido, com precoce mas apurado sentido crítico, o jovem poeta dá por finda, de forma irónica, a sua primeira incursão poética: «Lírios do Monte» é o meu remorso. De tal forma que ainda hoje, quando me calha folhear, colérico, esses ignóbeis versos, sinto ganas de ir à procura de todos os meus antigos professores do liceu para lhes pedir explicações e quebrar-lhes a cara! Sim, sim, quebrar-lhes a cara! Vocês são os responsáveis de tudo: das boninas, das avenas, dos abrolhos a rimarem com olhos, dos lírios a rimarem com martírios e de toda a minha ignorância do mundo exterior a empurrar-me para a ilusão de só existir beleza dentro de mim!
A fina ironia, um humor desarmante e o aguçado sentido crítico, serão, a partir daí, a marca mais funda, mais silente do seu peculiar modo de escrever. Um estilo que se tornou forma inimitável de utilização das palavras, de as moldar a um universo poético único quer no modo de abordar os fenómenos sociais do seu tempo, quer na transfiguração do real quotidiano, ou ainda na inexcedível, hábil metaforização com que erguia as palavras/armas da nossa resistência: Ó pastor que choras/o teu rebanho onde está/deita as mágoas fora/carneiros é o que mais há.
No «fatídico» ano de 1926, José Gomes Ferreira parte para a Noruega como cônsul de Portugal em Kristiansund, cargo que ocupará até 1929. Sobre essa experiência, da qual deixa vários testemunhos dispersos pela sua obra de memórias, publicará, em 1969, um magnífico livro de contos, Tempo Escandinavo.
De volta a Lisboa, o poeta casa com Ingrid Hestnes, e é já com a vida familiar estabelecida que, em 1931, publica na revista PresençaViver Sempre Também Cansa, que será o primeiro poema em que a sua voz surge já plenamente definida, se bem que ainda configurando traços das dinâmicas textuais que o terão influenciado, e sobre os quais, aliás, escreveu: o romantismo, sobretudo de Camilo Castelo Branco e o realismo empírico de Gomes Leal. Viver Sempre Também Cansa é, no entanto, um poema deviragem na sua arte poética, um texto de lúdica lucidez como o designou Casimiro de Brito. Assim o entendeu, igualmente, o autor de Acordai, quando a ele se refere: Na noite de 8 de Maio de 1931, num segundo andar da rua Marquês da Fronteira, encontrei, finalmente, a expressão autêntica do poeta autêntico, há tanto procurada: à terceira tentativa, para uma série de poesias que eu intitulava «Poemas da Reincidência», escrevi dum jacto e quase sem emendas o poema «Viver Sempre Também Cansa». No entanto, este poema, apesar do subtil lirismo que o atravessa, denuncia já algumas linhas de conflitualidade – que posteriormente o poeta extremará  entre o eu individual e o eu social que, de forma mais clara e dialéctica, José Gomes elevará, inquiridor lúcido, a patamares de auto-acusação e desassombro cujos contornos persistirão na sua obra, feita de um lirismo mistificador do universo, como refere Manuel G. Simões,antinomias que o autor resolverá de modo diverso nas obras posteriores, ou seja a partir de 1936/37, com Panfleto Contra a Paisagem. A contestação do real, a revolta que explode nos seus versos, carregados de angústia, contra os dias ignaros e sórdidos, um grito de denúncia a que a esperança se atrela como estandarte de luta, de resistência, de pleno sentido da justiça e da verdade: O nosso mundo é este/vil e suado/dos dedos dos homens/sujos de morte //Um mundo forrado/de pele de mãos/com pedras roídas/das nossas sombras //Um mundo lodoso/do suor dos outros/e sangue nos ecos/colados nos passos... // (...) Um mundo de cárceres/com grades de súplica/e o vento a soprar/nos muros de gritos. (...) O nosso mundo é este/suado de morte/e não o das árvores/floridas de música/a ignorarem/que vão morrer/ E se soubessem,/dariam flor? // Pois os homens sabem/e cantam e cantam/com morte e suor. //O nosso mundo é este... //(Mas há-de ser outro). 
Sonhemos 
A poética de José Gomes Ferreira tenta reconquistar, na sua dilacerante revolta, o sentido lírico do real, o justo, humano equilíbrio no degradado viver quotidiano; transformar o pólen dos dias na consciência permanente, imanente dos homens face à sua terrível condição, para que o real se torne suportável. Só recuperando as traves do sonho, os caminhos extensos do porvir, o homem se libertará desta morte com insónia/chamada vida. Só olhando e estando atentos à violência que sobre nós exercem os traidores, desnudando o real do inumano que nos impõem para viver, regressando aos símbolos, aos signos milenares e míticos que a poesia expressa, transfiguraremos o real, tornando-o nosso e reconhecível, mesmo que para tanto seja necessário dissecá-lo até ao osso: Deixem-nos o planeta descarnado e áspero/para vermos bem os esqueletos de tudo, até das nuvens.
José Gomes Ferreira foi sempre um atento e crítico leitor de si mesmo. Daí o autor de Gaveta de Nuvens ter mantido, apesar da aparente dispersão, temática e temporal da sua obra, uma unidade que torna singulares, como se de um único, polifónico poema se tratasse, os textos compilados nos livros Poesia I (1948); Poesia II (1950); Poesia III (1962); Poesia IV (1970) Poesia V (1973); poemas posteriormente reunidos nos volumes I, II III, de Poeta Militante (1978).José Gomes será, como ele próprio afirma, testemunha de olhos secos, do século que com ele nasceu, que na reinvenção prodigiosa do seu verbo, ora terno ora constituindo-se em demolidores gritos de denúncia agreste, o século se passeia.
Essa imanente forma de atenção ao real, a vertical, dorida inquietação como o enfrentava, está igualmente patente nas notas que acompanham muitos dos seus textos, como esta que introduz um dos poemas de Diário dos Dias Agrestes: Enquanto os aliados a caminho de Berlim morrem, eu entretenho-me a ver chover na Rua da Palma, espalmado num portal a cheirar a urina. Será este arguto sentido de impotência e culpa individual que o poeta tentará transmitir aos seus concidadãos para que a crua nudez da indignação se torne insuportável e o grito de revolta cresça e expluda, tornando-se colectivo expressivo mote para a acção, consequente e libertário; se transforme na palavra inaugural de um novo tempo: não fiques para trás, ó companheiro/é de aço esta fúria que nos leva/para não te perderes no nevoeiro/segue os nossos corações na treva.
Sobre as suas «heróicas», escreverá num dos textos deGaveta de Nuvens: Escrevi no Senhor da Serra, duas letras para Canções do Fernando Lopes-Graça: Ò Pastor Que Choras e Papoilas. Versos funcionais que não pretendiam ser belos por si mesmos separados da melodia, mas servir um conjunto determinado. Tão funcionais e belos são estes poemas que os tornámos hinos nossos, canções do nosso mais perene património colectivo – para cantarmos nos dias altos da revolta, ou nos dias justos da nossa comum alegria.
José Gomes foi, não só, o poeta que pensava, de forma permanente e autocrítica, esta estranha coisa, esta mordente singularidade de se ser português, mas, simultaneamente, o poeta em cuja voz pulsava os inquietos rumores de um mundo minado pela violência, pela injustiça e pela usura; uma voz marcada pela resistência, denunciadora de tudo quanto fere, macula e degrada a condição humana. Daí que os seus versos transportem, sem rebuços, o dilacerante, irreprimível grito (dói-me a boca de silêncio/vou gritar!) que polemiza sobre os arquétipos de uma realidade que o constrangia e revoltava, trazendo em seu bojo o sonho de um outro porvir, recusando com pés de névoa/na minha combustão de desalinho, um mundo de que lhe chegam ecos de miséria, opressão e guerra, interrogando, com angústia que sangra, a lama chamejante desse tempo sujo. O poeta sente como que o peso cósmico do Universo, e essa viva e actuante condição de ser transforma a sua poesia no reflexo da realidade histórica e política do seu tempo, tentando que a força das palavras (grito, arma) sirva aos homens quandounidos como os dedos da mão puderem enfim chegar ao fim da estrada mudando os rumos da História e transformando-a na busca constante, dialéctica, ética e solidária, pela dignidade da condição humana, razão última, activa e permanente, de ser e de existir, dado que é preciso viver de fronte levantada dado que A Morte é para os mortos.
Penso que a obra literária de Gomes Ferreira expressa, desde os anos 1930, uma grande unidade formal e um inquestionável posicionamento crítico face ao real. Poeta de um tempo – o século XX – cuja obra prolongava, anunciando, na profunda componente humanista que a estrutura, o futuro, que ele, no sensível modo de o imaginar, antevia justo, fraterno, límpido, povoado por homens com mãos de pássaroà espera de outras mãos de algum dia,/suadas da camaradagem do mundo novo. Utopia? Não, só o poeta inteiro e íntegro a inscrever, no dorso das palavras, as rotas do devir sonhado. Só os que não sabem, ou não conseguem sonhar os dias que virão, agitadores do medo e do papão, os propagandistas do não há alternativa, os ignaros que advogam a impossibilidade de mudança, ignoram o grito da voz dos homens que no seu modo enxuto de cantar, constroem, com estrelas de suor/e mãos de argila, o novo, oCanto Comum que na nossa indignada voz habita, que ampliará os dias altos e os tornará nossos e possíveis.
O apuro estético, o virtuosismo formal, da obra de José Gomes Ferreira, não esconde o homem político, genuína e afectivamente preocupado com os destino dos seus concidadãos. Existe na sua obra, segundo Lúcia Lepecki um efeito de totalidade, que percorre a memória do passado – a infância, a adolescência, as tertúlias, as amizades, o tempo escandinavo – e se projecta no clamor dos dias de Abril e no futuro. Uma poesia que se constrói, afirma, sobre as derivas históricas do século XX mas se recusa a nele se fechar e se junta ao coro dos poetas mais novos. É esse modo jovial e desarmante de ser que o levará a afirmar, no acto de posse dos corpos gerentes da Associação Portuguesa de Escritores, da qual foi o primeiro presidente, ser esse O primeiro acto verdadeiramente poético da minha vida.
Nos dias que antecederam Abril (20 e 24), anotava José Gomes no seu Diário do Dias Comuns: Antes de ontem e ontem prenderam em Lisboa e no Porto perto de 30 pessoas da Seara Nova, Notícias da Amadora, etc. Das pessoas indicadas só conheço pessoalmente o Orlando Gonçalves, que não vejo há algum tempo, e o Mário Ventura Henriques (...) – Prisões, prisões, prisões... Recebemos uma carta do Marcello em que nos diz ter intercedido pelo António Modesto Navarro, mas que o preveníssemos se as suas ordens não tivessem sido cumpridas. Não foi preciso. No dia 25, Abril abriu as portas – das prisões e dos sonhos!

Terminador errado (25/11/1975

Há quem julgue que nos venceu
só porque estamos para aqui famintos e nus,
de novo sem terra nem céu
a apanhar do chão,
às escondidas do luar,
os frutos proibidos

Mas não.

Temos ainda uma arma de luz
para lutar:
SONHAMOS

... enquanto os outros, os traidores,
sem lutas nem cicatrizes
entregam a terra ao rasto do gamos
e douram os olhos dos velhos senhores
com voos de perdizes...

Sim, sonhamos.
E o sonho quem o derrota? 
mesmo quando vamos
perdidos na rota
de um barco sem remos
na tempestade de um vulcão

Sim, camaradas, sonhamos.

SONHEMOS!

José Gomes Ferreira (1900/1985)
 

Bibliografia: Obras de José Gomes Ferreira; José Gomes Ferreira – Fotobiografia, de Raúl Hestnes Ferreira; SOBREIMPRESSÕES, de Maria Lúcia Lepecki; INCISÕES OBLÍQUAS, de António Ramos Rosa; Prefácio a «Poesia I», de José Gomes Ferreira, por Alexandre Pinheiro Torres – Colecção «Poetas de Hoje» – Portugália Editora


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Teremos o maior prazer em receber seu comentário.