Por Alexandre Pilati
Apesar de a figura de Neruda ser capaz de mobilizar muita
gente em torno de si, demonstrando atualidade e vigor, em quase todas as
manifestações que lembram sua obra poética verifica-se um esforço, consciente
ou não, para o esmaecimento da força política de sua obra, através da
construção de uma abordagem desproblematizadora do seu engajamento poético e
ético com as lutas históricas da esquerda mundial.
No último dia 11 de julho, completaram-se 110 anos do
nascimento de um dos maiores poetas do século XX, o chileno Pablo Neruda.
Prêmio Nobel de 1971, o autor foi lembrado em diversos cantos do planeta e teve
sua obra revisitada com leituras públicas, republicações e análises críticas.
Apesar de a figura de Neruda ser capaz de mobilizar muita gente em torno de si,
demonstrando atualidade e vigor, em quase todas as manifestações que lembram
sua obra poética verifica-se um esforço, consciente ou não, para o esmaecimento
da força política de sua obra, através da construção de uma abordagem
desproblematizadora do seu engajamento poético e ético com as lutas históricas
da esquerda mundial.
A obra de Neruda está articulada a uma imensa teia de
projeções utópicas que, durante o século XX, foram eficientes ao confrontar,
colocar em xeque e, nos melhores casos, ensaiar uma superação dos modelos
burgueses de existência social. A produção e a apreciação estética, como
aspectos fundamentais das mediações entre os homens em sociedade, não estavam
fora deste escopo utópico. Tratava-se, no caso de Neruda e de tantos outros que
lhe faziam companhia, de lutar por novas formas de comunicação e sensibilidade
poéticas, a partir do legado deixado pelo que de melhor a cultura ocidental
produzira. Dessa forma, o trabalho estético de gerações de poetas que incluem,
por exemplo, Brecht e o próprio Neruda, consistia em, conscientemente,
apropriar-se de códigos consagrados pela cultura burguesa e reverter-lhes a
polaridade poética e ideológica, a fim de que se tornassem algo menos
individualista ou ensimesmado e que encarnasse de fato o desejo de
transformação social inerente à luta contra o capitalismo.
É claro que essa aventura não era simples e o fracasso, em
termos poéticos, era muito frequente. Mas, no caso dos grandes poetas, como
Neruda, o saldo é amplamente positivo no que se refere à criação de uma forma
poética ao mesmo tempo rigorosa e popular, complexa e significativamente
reveladora da vida “simples como o pão”, conforme o próprio poeta gostava de
dizer. O programa poético de Neruda incluía a ideia do poeta como alguém que encarna
uma “voz civil”, representativa do povo e, por extensão, dos anseios mais
profundos de uma forma coletiva nacional que àquela altura apreendia o andar da
história a partir de um ângulo periférico em relação ao centro do sistema
capitalista. Para isso, contudo, era preciso promover uma espécie de esforço
“desintoxicante” da linguagem poética.
Para que o leitor de hoje tenha uma ideia da consistência
desse empenho vale relembrar que Neruda proclamava, desde o seu Canto Geral
(1950), uma forma de colocar-se contra os: “intelectualistas gideanos, os
ofuscadores rilkeanos da vida, os prestidigitadores existencialistas
especiosos, papoulas surrealistas, brilhantes apenas nos seus túmulos, carcaças
da moda europeizante, larvas pálidas no queijo do capitalismo”. Era, pois, um
esforço em grande medida destrutivo, que, todavia, se observado com atenção,
não era pura negação. Tudo isso contra que Neruda se posicionava já estava há
muito arraigado como valor intrínseco de sua dicção poética, entre barroca e
retórica, na melhor tradição da poesia espanhola. A inflexão política de
Neruda, implicava trabalho também com esses elementos “barrocos” que ele
tentava negar, mas que estavam já inexoravelmente incrustados na sua gramática
poética particular. O caso, portanto, era mais o de extrair efeitos
políticos/estéticos novos das contradições entre a velha retórica espanhola, o
hermetismo universal e o desejo de construir uma poesia rigorosa e
verdadeiramente popular. Tudo isso explicitado por uma voz cujo lócus político enunciativo
fosse capaz de assumir as contradições da experiência nacional.
Numa conferência de 1953, esses dilemas são expostos com
grande franqueza por Neruda: “Para mim foi um grande esforço sacrificar a
obscuridade em favor da clareza, pois a obscuridade da linguagem se tornou um
privilégio de uma casta literária de nosso país”. E, para ele, sacrificar a
obscuridade era assumir a dilemática tarefa de, após formar-se como típico
poeta do mundo burguês, escrever uma poesia “como o pão que pode ser partilhado
por todos, por homens doutos e camponeses, por toda a nossa inteira,
imensurável e maravilhosa família de gente”. Era desse modo que a poesia se
proclamava, altissonante e delicada, como partícipe de um desejo por novas
formas de democracia popular em escala nacional e universal.
Com isso, Neruda integrava-se a um movimento de amplo
alcance, do qual participavam poetas da Europa e das Américas, que foi muito
bem caracterizado pelo crítico Michael Hamburger como “Uma nova austeridade” .
As palavras do estudioso são luminosas para entender a consistência
poética/política do fenômeno Neruda. Segundo ele, a chamada “nova antipoesia”:
“surgiu de uma aguda desconfiança de todos os recursos com os quais a poesia
lírica mantivera sua autonomia. Para os novos antipoetas, não bastava que a
poesia fosse tão bem escrita quanto a prosa. Ela deveria também ser capaz de
comunicar de maneira tão direta quanto a prosa, sem recorrer a uma linguagem
especial, que se distinguisse sobretudo por seu caráter altamente metafórico”.
Ou seja, no limite, este grande movimento estava interessado em fazer da poesia
uma forma de comunicação menos rebuscada e mais austera. Algo simples e
necessário “como o pão”, à altura das exigências políticas e sociais do seu
tempo. E isto se converteu em um verdadeiro “princípio de busca” da poesia de
Neruda, que podemos ver presente inclusive na sua lírica amorosa. Os versos do
poema número 5 de Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, são
emblemáticos nesse sentido: “Para que tú me oigas/ mis palabras/ se adelgazan a
veces/ como las huellas de las gaviotas en las playas”.
Neruda alçou suas palavras “como as asas das gaivotas nas
praias” também com o fito de que se proporcionasse uma nova fruição da poesia.
Não por acaso, o poeta declamava seus poemas para grandes audiências, como na
oportunidade em que ganhou o prêmio Nobel e foi convidado por Salvador Allende
para ler poesia para mais de 70 mil pessoas no Estádio Nacional do Chile em
1971. Se a obra de Neruda foi uma espécie de sonho produtivo da poesia
latino-americana, a realidade opressiva do imperialismo e do subdesenvolvimento
estava ali sempre disposta a desmentir a realização desse sonho. Foi em meio a
circunstâncias terríveis da história chilena que a sensibilidade e o empenho da
poesia de Neruda se calaram. Poucos dias depois da morte de Allende durante o
golpe perpetrado pelas forças lideradas por Augusto Pinochet, o poeta morreu,
em decorrência de um câncer, em 23 de setembro de 1973. Sua voz, entretanto,
converteu-se em um canto de todos que lutam pela esperança e contra todas as
formas de opressão. É isto que, ao evocar Neruda, não devemos esquecer.
Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da
Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e
organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação
da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012).
www.alexandrepilati.com
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