quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Pátria

RINALDO BARROS
ESCRITOR E PROFESSOR

 “Todo cidadão é marinheiro na nau da pátria” (Frei Caneca, filho de Recife, 1779 a 1825)

(*) Rinaldo Barros

Esta conversa revela a ansiedade vivida pelo autor frente à situação atual de “nossa amada pátria-mãe, tão distraída e subtraída em tantas tenebrosas transações”; o que me leva a relembrar lutas da história de Pernambuco, berço da construção da cidadania brasileira. Berço meu, cheio de saudosas recordações.

Nos primeiros dias do ano de 1822, na província de Pernambuco, o frade carmelita Joaquim do Amor Divino Caneca, com o objetivo de melhor esclarecer aos habitantes da cidade do Recife e suas adjacências, elaborou um texto de importância inconteste ao estudo da questão da identidade nacional.

Refletindo sobre o sentido da palavra pátria e sobre o sentimento dela proveniente, Frei Caneca escreveu numa época em que ainda não se discutiam tais ideias na província.

Assim nos ensinou o Frei Joaquim do Amor Divino:

“Quando a nau da pátria se acha combatida por ventos embravecidos; quando, pelo furor das ondas, ela ora se sobe às nuvens, ora se submerge nos abismos; quando levada pelo furor dos euripos, feita o ludibrio dos mares, ela ameaça naufrágio e morte, todo cidadão é marinheiro; um dever sustentar o timão, outro pôr a cara ao astrolábio, ferrar o pano outro, outro alijar ao mar os fardos que a sobrecarregam e afundam, cada um prestar a diligência ao seu alcance, e sacrificar-se pelos cidadãos em perigo”.

Tal reflexão do Frei Caneca, recebeu o título de “Dissertação sobre o que se deve entender por pátria”, e só seria publicado no ano seguinte, "por falta de tipografia no país".

Em contexto mais recente, em 15 de janeiro de 1985, o presidente eleito pelo Colégio Eleitoral, por 480 votos (e que não chegou a tomar posse), Tancredo Neves, inspirado em Frei Caneca, leu um discurso no plenário do Congresso Nacional, do qual destaco o seguinte trecho:

“Não há pátria, onde falta Democracia. A pátria não é a mera organização dos homens em estados, mas sentimento e consciência, em cada um deles, de que lhe pertencem o corpo e o espírito da nação. Sentimento e consciência da intransferível responsabilidade e por sua coesão e destino. A pátria é escolha, feita na razão e Liberdade. Não basta a circunstância do nascimento para criar essa profunda ligação entre o indivíduo e sua comunidade. Não teremos a pátria que Deus nos destinou enquanto não formos capazes de fazer de cada brasileiro um cidadão, com plena consciência dessa dignidade. Assim sendo, a pátria não é o passado, mas o futuro que construímos com o presente; não é a aposentadoria dos heróis, mas a tarefa a cumprir; é a promoção da Justiça e a Justiça se promove com Liberdade”.

Esses dois episódios da vida nacional, leva-nos à reflexão sobre as dificuldades de se instalar as bases para a Liberdade, fundadas na noção dos Direitos do Homem.

Se não parece haver dúvidas de que a obra de Caneca nos diz muito de sua época e certamente nos permite entender com mais cuidado os embates travados no momento de constituição do Estado brasileiro, a questão é saber se ela nos permite compreender, também, nosso modo de pensar e de agir contemporâneos.

Quem é, numa palavra, este povo que se diz agora marinheiro e piloto, isto é, sujeito soberano e, ao mesmo tempo, súdito da soberania que institui? A resposta, sabemos, não é fácil.

Além disso, para o liberal pernambucano, apenas debaixo da lei, assim constituída, sob controle popular, poderia o governo possibilitar o pleno desabrochar das potencialidades individuais, o desenvolvimento “das artes, dos costumes, da razão”.

Caneca, em seu sonho cívico, reivindicou insistentemente a instalação de uma nação ancorada numa Constituição que fosse fruto de um pacto feito entre os cidadãos. Tancredo enfatizou os deveres e direitos deste cidadão, ressaltando a profunda necessidade de serem estes últimos garantidos pela Carta Magna.

O que para nós todos deve ficar muito claro é que, no atual momento histórico, a defesa da Democracia exige de cada um de nós o exercício pleno da cidadania, atentos aos fatos - de corrupção e desgoverno - que a realidade nos impõe.

Como diria o próprio Frei: “a Lei é a garantia da Liberdade de todos os cidadãos”.

Pergunto: se “todo cidadão é marinheiro”, como afirmou Caneca, quem deve ser o timoneiro da pátria quando a própria Liberdade está em risco? Como tornar vida o sonho comum de Caneca e Tancredo?

O poeta Manoel de Barros (1916 a 2014) ensinou que “Liberdade caça jeito”.

Mas, a resposta é privilégio do leitor.




(*) Rinaldo Barros é professor – rb@opiniaopolitica.com

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