RINALDO BARROS
ESCRITOR E PROFESSOR
“Todo cidadão é marinheiro na nau da pátria” (Frei Caneca,
filho de Recife, 1779 a 1825)
(*) Rinaldo Barros
Esta conversa revela a ansiedade vivida pelo autor frente à
situação atual de “nossa amada pátria-mãe, tão distraída e subtraída em tantas
tenebrosas transações”; o que me leva a relembrar lutas da história de
Pernambuco, berço da construção da cidadania brasileira. Berço meu, cheio de
saudosas recordações.
Nos primeiros dias do ano de 1822, na província de
Pernambuco, o frade carmelita Joaquim do Amor Divino Caneca, com o objetivo de
melhor esclarecer aos habitantes da cidade do Recife e suas adjacências,
elaborou um texto de importância inconteste ao estudo da questão da identidade
nacional.
Refletindo sobre o sentido da palavra pátria e sobre o
sentimento dela proveniente, Frei Caneca escreveu numa época em que ainda não
se discutiam tais ideias na província.
Assim nos ensinou o Frei Joaquim do Amor Divino:
“Quando a nau da pátria se acha combatida por ventos
embravecidos; quando, pelo furor das ondas, ela ora se sobe às nuvens, ora se
submerge nos abismos; quando levada pelo furor dos euripos, feita o ludibrio
dos mares, ela ameaça naufrágio e morte, todo cidadão é marinheiro; um dever
sustentar o timão, outro pôr a cara ao astrolábio, ferrar o pano outro, outro
alijar ao mar os fardos que a sobrecarregam e afundam, cada um prestar a
diligência ao seu alcance, e sacrificar-se pelos cidadãos em perigo”.
Tal reflexão do Frei Caneca, recebeu o título de
“Dissertação sobre o que se deve entender por pátria”, e só seria publicado no
ano seguinte, "por falta de tipografia no país".
Em contexto mais recente, em 15 de janeiro de 1985, o
presidente eleito pelo Colégio Eleitoral, por 480 votos (e que não chegou a
tomar posse), Tancredo Neves, inspirado em Frei Caneca, leu um discurso no
plenário do Congresso Nacional, do qual destaco o seguinte trecho:
“Não há pátria, onde falta Democracia. A pátria não é a mera
organização dos homens em estados, mas sentimento e consciência, em cada um
deles, de que lhe pertencem o corpo e o espírito da nação. Sentimento e
consciência da intransferível responsabilidade e por sua coesão e destino. A
pátria é escolha, feita na razão e Liberdade. Não basta a circunstância do
nascimento para criar essa profunda ligação entre o indivíduo e sua comunidade.
Não teremos a pátria que Deus nos destinou enquanto não formos capazes de fazer
de cada brasileiro um cidadão, com plena consciência dessa dignidade. Assim
sendo, a pátria não é o passado, mas o futuro que construímos com o presente;
não é a aposentadoria dos heróis, mas a tarefa a cumprir; é a promoção da
Justiça e a Justiça se promove com Liberdade”.
Esses dois episódios da vida nacional, leva-nos à reflexão
sobre as dificuldades de se instalar as bases para a Liberdade, fundadas na
noção dos Direitos do Homem.
Se não parece haver dúvidas de que a obra de Caneca nos diz
muito de sua época e certamente nos permite entender com mais cuidado os
embates travados no momento de constituição do Estado brasileiro, a questão é
saber se ela nos permite compreender, também, nosso modo de pensar e de agir
contemporâneos.
Quem é, numa palavra, este povo que se diz agora marinheiro
e piloto, isto é, sujeito soberano e, ao mesmo tempo, súdito da soberania que
institui? A resposta, sabemos, não é fácil.
Além disso, para o liberal pernambucano, apenas debaixo da
lei, assim constituída, sob controle popular, poderia o governo possibilitar o
pleno desabrochar das potencialidades individuais, o desenvolvimento “das
artes, dos costumes, da razão”.
Caneca, em seu sonho cívico, reivindicou insistentemente a
instalação de uma nação ancorada numa Constituição que fosse fruto de um pacto
feito entre os cidadãos. Tancredo enfatizou os deveres e direitos deste
cidadão, ressaltando a profunda necessidade de serem estes últimos garantidos
pela Carta Magna.
O que para nós todos deve ficar muito claro é que, no atual
momento histórico, a defesa da Democracia exige de cada um de nós o exercício
pleno da cidadania, atentos aos fatos - de corrupção e desgoverno - que a
realidade nos impõe.
Como diria o próprio Frei: “a Lei é a garantia da Liberdade
de todos os cidadãos”.
Pergunto: se “todo cidadão é marinheiro”, como afirmou
Caneca, quem deve ser o timoneiro da pátria quando a própria Liberdade está em
risco? Como tornar vida o sonho comum de Caneca e Tancredo?
O poeta Manoel de Barros (1916 a 2014) ensinou que
“Liberdade caça jeito”.
Mas, a resposta é privilégio do leitor.
(*) Rinaldo Barros é professor – rb@opiniaopolitica.com
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