segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O Relojoeiro do Tempo





 Tomislav R. Femenick

Qual o número da sua senha da fila de prestação de contas? – perguntou o ancião que estava sentado à frente de um livro de tamanho descomunal.
– Sei não senhor. Um italiano pediu a senha para conferir e não voltou mais com ela. Mas posso dizer que eu cheguei aqui ontem – respondeu humildemente.
– Esses mafiosos não têm jeito. Meu filho, aqui no céu não existe tempo, portanto não há ontem, hoje e nem amanhã. Por isso é que instituímos as senhas; para organizar a fila. Como é seu nome?
– Valdir Freire, Valdir Freire de Freitas; Valdir com “V” e não com “vêdáblio”. Sou lá de Caraúbas, mas faz tanto tempo que moro em Mossoró que já posso dizer que sou mossoroense – respondeu novamente o recém-chegado ao reino celestial.
– Já vi que você não tem experiência nas coisas aqui do céu, meu filho. E onde é que ficam essas cidades?
– Lá no Rio Grande do Norte, no Brasil.
Coçando a cabeça, São Pedro falou como se para si mesmo: “Brasil, o país de Pelé, da sem-vergonhice do carnaval, do mensalão, mas também do Cristo Redentor. Rio Grande do Norte, a terra de Nízia Floresta e Cascudinho”.
Ai, abriu o livrão. Abriu mesmo na página do seu Valdir e foi lendo baixinho – parece que ele tem mania de falar seus pensamentos:
– Estudou por correspondência, portanto tem força de vontade; abandonaram um relógio em sua loja por dez anos, mas ele não vendeu, portanto é honesto; sua loja era pequena e apertada, prova é que nunca ficou rico... É, acho que dá para você entrar no céu. Mas primeiro tem que fazer um estágio, para averiguar sua qualificação. Eu detesto isso, mas um pessoal novo chegou por aqui e implantou esse sistema. Precisamos primeiro testar suas habilidades. O que é que você sabe fazer?
– Consertar relógios – disse seu Valdir.
– Ah, isso não serve – retrucou São Pedro.
– Por quê? – quis saber o caraubense-mossoroense.
Com paciência, o santo explicou:
– Porque aqui no céu não existe tempo. Passado, presente e futuro é tudo igual; é só uma questão de posicionamento. Você não leu as teorias daquele menino, o Albert Einstein?
– Li alguma coisa... mas não entendi muito bem não senhor – retrucou o relojoeiro.
– Bem isso não importa. Temos que arranjar algo para você fazer aqui no céu, enquanto durar o seu estágio. Como eu detesto esses burocratas; se metem até nas regras aqui do reino de Deus. Espere sentado ali, que dentro de alguns instantes voltaremos a falar sobre seu caso.
Acostumado com as coisas da Terra e, principalmente,, do Brasil, seu Valdir pensou com seus botões:
– Vou esperar alguns séculos e nada vai ser resolvido.
Nisso ouviu a voz do guardião da porta celestial:
– Não seu Valdir, aqui as coisas são diferentes. Mesmo que fossem séculos, seria só um instantinho de nada.
O velho santo entrou, convocou uma conferencia com os novos burocratas e exigiu que eles encontrassem uma solução para o caso de relojoeiro. Eles insistiram que os novos manuais não previam lugar no céu para uma profissão que não produzia “valor agregado”. Se não há tempo, os relógios e os relojoeiros não têm utilidade. A reunião já ia ficando cansativa, quando o santo apóstolo bateu na mesa e, com a sua voz de rocha, exigiu uma solução imediata. Os burocratas confabularam e confabularam entre si e encontraram um meio para superar o problema: o senhor Valdir seria o responsável pelo efeito do tempo na Terra. Iria cuidar da rotação e do equilíbrio do eixo do nosso planeta. Pedro não aceitou; era uma função técnica demais, chata demais para quem tinha amor aos relógios, notadamente aos de paredes. Novas confabulações e outra solução: Valdir seria o zelador de todos os relógios, de todas as igrejas do mundo. Seria o responsável, o relojoeiro do seu tempo e pontualidade.
Quando o santo e ex-bispo de Roma foi dar a notícia ao senhor Valdir, este quase teve um enfarte de alegria – só não teve porque já estava no céu.



Nota: Na Gazeta do Oeste, li duas matérias de Mário Gerson: uma sobre o falecimento do Sr. Valdir Freire, relojoeiro lá de Mossoró, e outro sobre o livro “Temas roubados”, de Anchieta Monte. Não hesitei; roubei um dos temas.

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