Humberto de Campos
Alto,  magro, com os bigodes grisalhos a desabar, como ervas selvagens pela  face de um abismo, sobre os cantos da funda boca munida de maus dentes, o  professor Arduíno Gonçalves era um desses homens absorvidos  completamente pela gramática. Almoçando gramática, jantando gramática,  ceando gramática, o mundo não passava, aos seus olhos, de um enorme  compêndio gramatical, absurdo que êle justificava repetindo a famosa  frase do Evangelho de João:
— No princípio era o VERBO!
Encapado  pela gramática, e às voltas, de manhã à noite, com os pronomes, com os  adjetivos, com as raízes, com o complicado arsenal que transforma em um  mistério a simplicíssima arte de escrever, o ilustre educador não  consagrava uma hora sequer às coisas do seu lar. Moça e linda, a esposa  pedia-lhe, às vezes, sacudindo-lhe a caspa do paletó esverdeado pelo  tempo:
— Arduíno, põe essa gramatiquice de lado. Presta atenção aos teus filhos, à tua casa, à tua mulher! Isso não te põe para diante!
Curvado  sobre a grande mesa carregada de livros, o cabelo sem trato a cair,  como falripas de aniagem, sobre as orelhas e a cobrir o colarinho da  camisa, o notável professor retirava dos ombros a mão cariciosa da  mulher, e pedia-lhe, indicando a estante:
— Dá-me dali o Adolfo Coelho.
Ou:
— Apanha, aí, nessa prateleira, o Gonçalves Viana.
Desprezada  por esse modo, Dona Ninita não suportou mais o seu destino: deixou o  marido com as suas gramáticas, com os seus dicionários, com os seus  volumes ponteados de traça, e começou a gozar a vida passeando, dançando  e, sobretudo, palestrando com o seu primo Gaudêncio de Miranda, rapaz  que não conhecia O padre Antônio Vieira, o João de Barros, o frei Luís  de Sousa, o Camões, o padre Manuel Bernardes, mas que sabia, como  ninguém, fazer sorrir as mulheres.
— Êle não prefere, a mim, aquela porção de alfarrábios que o rodeiam?   Então, que se fique com eles!
E  passou a adorar o Gaudêncio, que a encantava com a sua palestra, com o  seu bom-humor, com as suas gaiatices, nas quais não figuravam, jamais,  nem Garcia de Rezende, nem Gomes Eanes de Azurara, nem Rui de Pina, nem  Gil Vicente, nem, mesmo, apesar do seu mundanismo, D. Francisco Manuel  de Melo.
Assim viviam, o professor, com seus puristas e Dona  Ninita com o seu primo, quando, de regresso, um dia, ao lar, o  desventurado gramático surpreendeu a mulher nos braços musculosos, mas  sem estilo, de Gaudência de Mianda. Ao abrir0se a porta, os dois  culpados empalideceram, horrorizados. E foi com o pavor no coração que o  rapaz se atirou aos pés do espôso traído, pedindo súplice, de joelho:
— Me perdôe, professor!
Grave, austero, sereno, duas rugas profundas sulcando a testa ampla, o ilustre educador encarou o patife, trovejando, indignado:
— Corrija o pronome, miserável! Corrija o pronome!
E, entrando no gabinete, começou, cantarolando, a manusear os seus clássicos...
(*)  Esta engraçada anedota com que Humberto de Campos divertiu os leitores  de "O Imparcial" e, depois, os do livro "AGansos do Capitólio", vem  condensada no texto da 'Fisiologia do Casamento", de Honoré de Balzac,  sendo ai o protagonista um membro da Academia Francesa.
(Foi mantida a gramática da época).
Humberto de Campos Veras, jornalista,  político, crítico, cronista, contista, poeta, biógrafo e memorialista,  nasceu em Miritiba, hoje Humberto de Campos, MA, em 25 de outubro de  1886, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de dezembro de 1934. Foram  seus pais Joaquim Gomes de Faria Veras, pequeno comerciante, e Ana de  Campos Veras. Perdendo o pai aos seis anos, Humberto de Campos deixou a  cidade natal e foi levado para São Luís. Dali, aos 17 anos, passou a  residir no Pará, onde conseguiu um lugar de colaborador e redator na  "Folha do Norte" e, pouco depois, na Província do Pará. Em 1910 publicou  seu primeiro livro, a coletânea de versos intitulada “Poeira”, primeira  série. Em 1912 transferiu-se para o Rio. Entrou para o jornal “O  Imparcial”, na fase em que ali trabalhava um grupo de escritores  ilustres, como redatores ou colaboradores, entre os quais Goulart de  Andrade, Rui Barbosa, José Veríssimo, Júlia Lopes de Almeida, Salvador  de Mendonça e Vicente de Carvalho. João Ribeiro era o crítico literário.  Ali também José Eduardo de Macedo Soares renovava a agitação da segunda  campanha civilista. Humberto de Campos ingressou no  movimento. Logo depois o jornalista militante deu lugar ao intelectual.  Fez essa transição com o pseudônimo de Conselheiro XX com que assinava  contos e crônicas, hoje reunidos em vários volumes. Assinava também com  os pseudônimos Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano,  Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios.
Eleito em 30 de  outubro de 1919 para a Cadeira nº. 20, sucedendo a Emílio de Menezes,  foi recebido em 8 de maio de 1920, pelo acadêmico Luís Murat.
Em  1920, já acadêmico, foi eleito deputado federal pelo Maranhão. Em 1923,  substituiu Múcio Leão na coluna de crítica do jornal “Correio da Manhã”.  A revolução de 1930 dissolveu o Congresso e ele perdeu seu mandato. O  presidente Getúlio Vargas, que era grande admirador do talento de Humberto de Campos,  procurou minorar as dificuldades do autor de “Poeira”, dando-lhe os  lugares de inspetor de ensino e de diretor da Casa de Rui Barbosa. Em  1931, viajou ao Prata em missão cultural. Em 1933 publicou o livro que  se tornou o mais célebre de sua obra, “Memórias”, crônica dos começos de  sua vida. O seu “Diário secreto”, de publicação póstuma, provocou  grande escândalo pela irreverência e malícia em relação a  contemporâneos.
Autodidata, grande ledor, acumulou vasta  erudição, que usava nas crônicas. Poeta neoparnasiano, fez parte do  grupo da fase de transição anterior a 1922. "Poeira" é um dos últimos  livros da escola parnasiana no Brasil. Fez também crítica literária de  natureza impressionista. É uma crítica de afirmações pessoais, que não  se fundamentam em critérios e, por isso, não podem ser endossadas nem  verificadas. Na crônica, seu recurso mais corrente era tomar conhecidas  narrativas e dar-lhes uma forma nova, fazendo comentários e digressões  sobre o assunto, citando anedotas e tecendo comparações com outras  obras. No fundo ou na essência, era uma crítica superficial, que não  resiste à análise nem ao tempo.
Obras: Poeira, poesia, 2 séries  (1910 e 1917); Da seara de Booz, crônicas (1918); Vale de Josaphat,  contos (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze,  contos (1921); Mealheiro de Agripa, vária (1921); Carvalhos e roseiras,  crítica (1923); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé,  contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); Grãos de  mostarda, contos (1926); Alcova e salão, contos (1927); O Brasil  anedótico, anedotas (1927); Antologia da Academia Brasileira de Letras  (1928); O monstro e outros contos (1932); Memórias 1886-1900 (1933);  Crítica, 4 séries (1933, 1935, 1936); Os países, vária (1933); Poesias  completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934); Sombras que  sofrem, crônicas (1934); Um sonho de pobre, memórias (1935); Destinos,  vária (1935); Lagartas e libélulas, vária (1935); Memórias inacabadas  (1935); Notas de um diarista, 2 séries (1935 e 1936); Reminiscências,  memórias (1935); Sepultando os meus mortos, memórias (1935); Últimas  crônicas (1936); Perfis, 2 séries, biografias (1936); Contrastes, vária  (1936); O arco de Esopo, contos (1943); A funda de Davi, contos (1943);  Gansos do Capitólio, contos (1943); Fatos e feitos, vária (1949); Diário  secreto, 2 vols. (1954). (Dados obtidos no sítio da Academia Brasileira  de Letras).
O  texto acima foi extraído do livro "Antologia de Humorismo e Sátira",  Ed. Civilização Brasileira - Rio de Janeiro, 1957, pag. 250, organização  de R. Magalhães Júnior.
 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Teremos o maior prazer em receber seu comentário.