terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

MUITO ALÉM DAS PALAVRAS



                                                      Ciro José Tavares


            A maior dificuldade na análise literária é a compreensão do vocábulo incluído no texto, no que respeita ao seu dimensionamento, o correto significado no tema que está sendo abordado. O leitor, por mais ávido e experiente que seja, escolhe por comodismo ler sem o apoio do dicionário e isso não é bom. Algumas palavras, às vezes as mais simples e conhecidas, emergem nas entrelinhas com força subjetiva que nos obriga refletir. A obra de Marcel Proust, Em busca do Tempo Perdido, por exemplo, exige maior tempo na reflexão do que na leitura propriamente dita. A poesia de Thomas Stearns Eliot, com seus versos longos e fracionados, indo adiante e retornando para retomar a linha melódica, deve ser lida com extrema paciência. A de William Blake, ainda mais complicada porque precisamos encontrar o caminho no meio de suas cores que nublam o entendimento.
            A palavra saudade, que só a língua portuguesa registra, não é somente o sentimento melancólico pelo afastamento ou ausência de pessoas, lugares, acontecimentos passados e outras definições atribuídas pelos dicionários.Adelle de Oliveira, no seu silêncio, na sua solidão teve a bendita coragem de escrever sobre tema tão complexo. E o fez com ima precisão que eu diria matemática. Seu poema Ignota Saudade não é o lugar comum de tantos outros. Nos dois primeiros versos já exige a suspensão da leitura para mergulhar no que escreve. É simples, mas arrasta o leitor ao universo das dúvidas  e dos descobrimentos.
            “Esta grande saudade eu não sei de que veio,
            E nem sei “por que foi que se infiltrou em meu seio.”
            A partir dessa incógnita ela avança permeando o que chama “insondável mistério o coração humano.” Quanto mais o leio, e foram tantas, novas e assustadoras vertentes se me apresentam.
            A propósito, Zuleide disse-me que só quem ama sente saudade. Banal? Muito ao contrário. Goethe corrobora a afirmativa na bela Elegia de Marienbad:
            “Ante a bruta saudade me impelindo,
Só me resta um remédio, o choro infindo.
Choro que jorra e flui, mas não tem jeito
De em meu íntimo a flama arrefecer!
Que violento me invade e rasga o peito
Onde a morte e o amor vêm combater.”
Também Oscar Wilde, no conto O Rouxinol E A Rosa, ao descrever o gesto do pássaro que doa sua vida para construir uma rosa vermelha. “A Vida é muito querida por todos. Contudo o Amor é melhor que a Vida e que é o coração de um pássaro comparado com o coração de um homem?”
No inglês a expressão Recollection não está restrita a lembranças, reminiscências. A amplitude do termo é encontrada no longo poema de Percy Bysshe Shelley To Jane: The Recollection. O poeta, propositadamente, mantém a palavra no singular, pois sua proposta estabelecida nos dois primeiros versos:
“Now the last Day of many days,
All beautiful and bright as thou”.
Somente nos últimos nove versos da quarta e penúltima estrofe ele, finalmente, esclarece.
A dificuldade que encontro na tradução de um poema de Shelley é o tempo que gasto dissecando seu pensamento na alma dos versos. Ele escreve o que não vê é extremamente lírico e subjetivo. O vocábulo Recollection está “traçado num círculo mágico, um espírito que nos enlaça e penetra uma vida quieta e arrebatadora, limitada momentaneamente ao antagonismo mortal de nossa natureza”, e completar seu elevado e espiritual raciocínio escrevendo:
“inebriado, senti que, na inerte atmosfera, o centro do círculo mágico fora preenchido com amor imaculado”. Na verdade a poesia é uma declaração de amor. Em Lerici, no litoral italiano, Shelley escreve seus últimos poemas, integrantes do que a crítica denomina o Círculo Mágico, todos eles dedicados à Jane William, sua hóspede na Casa Magni. Poucos dias depois, morreu afogado quando seu barco Ariel, naufragou no Golfo de Spezia. O marido de Jane, Edward Williams, e um grumete estavam com ele e pereceram no acidente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Teremos o maior prazer em receber seu comentário.