ENCONTRO COM A POESIA: MANUEL BANDEIRA
(Por Horácio Paiva)
Ainda
conservo, carinhosamente, uma edição antiga de poemas de Manuel Bandeira, reunidos
em antologia (a sétima que fez) e que adquiri em 30 de setembro de 1961 (a data,
escrevi-a na primeira página do livro), aos 16 anos de idade. Foi um
“alumbramento” estético, o que ainda sinto, hoje, quando o releio. Dos
brasileiros, é seguramente um de meus poetas preferidos. Naquele ano de 1961,
lembro bem, morava com minha tia Lulu (Luísa Paiva de Melo), irmã de minha mãe,
no Alecrim, em Natal, e lia muito Manuel Bandeira e Garcia Lorca. (O meu
primeiro poema publicado - no jornal “O Nacionalista”, de Macau -, intitulado “Tempo”, também data daquele
ano). Mas o conhecia de bem antes. O meu primeiro contato com Bandeira deu-se
provavelmente em 1957, ao ler alguns de seus poemas num caderno de notas de meu
irmão Graziani.
Manuel
Carneiro de Sousa Bandeira Filho (este o seu nome completo) nasceu no dia 19 de
abril de 1886, no Recife, e faleceu, aos 82 anos, no Rio de Janeiro, em 13 de
outubro de 1968.
O
poeta e tradutor José Paulo Paes, homenageando-o, escreveu o seguinte poema
curto:
“13
de outubro, morte de Manuel Bandeira
Epitáfio
Poeta
menormenormenormenormenor
menormenormenormenormenorenorme”
Manuel
Bandeira, poeta de grande lirismo e ternura, dissera em um de seus poemas
(“Testamento”): “Criou-me, desde eu menino,/ Para arquiteto meu pai./ Foi-se-me
um dia a saúde.../ Fiz-me arquiteto? Não pude!/ Sou poeta menor, perdoai!”
Naturalmente, empregara a expressão “poeta menor” não apenas por modéstia, mas
por ser um poeta essencialmente lírico, não afeito, literariamente, ao mundo
político, à poesia trágica, engajada ou social (usava, nesse sentido, uma
distinção, por gênero, dos antigos). Com efeito, diz em seu “Itinerário de
Pasárgada”: “Tomei consciência de que era
poeta menor; que me estaria para sempre fechado o mundo das grandes abstrações
generosas; que não havia em mim aquela espécie de cadinho onde, pelo calor do
sentimento, as emoções maiores se transmudam em emoções estéticas: o metal
precioso ou teria que sacá-lo a duras penas, ou melhor, a duras esperas, do
pobre minério das minhas pequenas dores e ainda menores alegrias.”
Escolhemos
o poema “Profundamente” (de seu quarto livro, “Libertinagem”, publicado em
1930) para representá-lo, pelo menos neste momento, dentre tantas outras
expressivas obras de sua autoria. O conteúdo existencial, nostálgico, evocativo,
presente nesse poema, caracteriza o conjunto de sua obra, que se reveste,
afinal, de tênue melancolia, reflexo provável de seu constante diálogo com a
morte. Com ela flertara muito cedo, jovem, em função de sua frágil saúde (a
tuberculose o perseguia). Uma curiosidade: quase à mesma época em que o li,
tive também acesso a outro grande poeta
- o americano Edgar Lee
Masters - através de seu igualmente belo poema “A
Colina” (“The Hill”), de abordagem lírica semelhante à de Bandeira, embora
publicado quinze anos antes, em 1915 (v. “notas”,
in fine).
MANUEL BANDEIRA (n. 19/04/1886, Recife; m. 13/10/1968, Rio de
Janeiro):
PROFUNDAMENTE
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de
Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de
São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes
daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
-x-x-x-x-x-
NOTAS:
(1) Transcrevo o poema de Edgar Lee Masters (23/08/1868-05/03/1950),
“A Colina” - primeiro poema de seu livro “A Antologia de
Spoon River”, publicado em 1915 - na íntegra, na bela tradução de outro grande
poeta, o nosso alagoano Jorge de Lima:
A COLINA
Onde estão Elmer, Herman, Bert,
Tom e Charley,
O irresoluto, o de braço forte, o
palhaço, o ébrio, o guerreiro?
Todos, todos, estão dormindo na
colina.
Um morreu de febre,
Um lá se foi queimado numa mina,
O outro assassinaram-no num
motim,
O quarto se extinguiu na prisão,
E o derradeiro caiu de uma ponte
quando trabalhava para
[a
esposa e os filhos.
Todos, todos, estão dormindo,
dormindo, dormindo na colina.
Onde estão Ella, Kate, Mag,
Lizzie e Edith,
A de bom coração, a de alma
simples, a alegre, a orgulhosa,
[a
feliz?
Todas, todas, estão dormindo na
colina.
Ella morreu de parto vergonhoso,
Kate de amor contrariado,
Mag nas mãos de um bruto num bordel,
Lizzie ferida em seu orgulho, à
procura do que quis seu
[coração,
E Edith, depois de ter vivido nas
distantes Londres e Paris,
Foi conduzida a seu pequeno
domínio por Ella e Kate e Mag.
Todas, todas estão dormindo,
dormindo, dormindo na colina.
Onde estão tio Isaac, e tia
Emily,
E o velho Towny Kincaid e Sevigne
Houghton,
E o Major Walker que conversava
Com os veneráveis homens da
revolução?
Todos, todos estão dormindo na
colina.
Trouxeram-lhes filhos mortos na
guerra,
E filhas cuja vida tendo sido
desfeita,
Os filhos sem pai choravam
Todos, todos, estão dormindo,
dormindo, dormindo na colina.
Onde está o velho violinista
Jones
Que brincou com a vida durante
noventa anos,
Desafiando as geadas a peito
descoberto,
Bebendo, fazendo arruaças, sem pensar
na esposa, nem na
[família,
Nem em dinheiro, nem em amor, nem
no céu?
Vede! Fala sobre os cardumes de
peixes de antigamente,
Sobre as corridas de cavalo,
outrora, em Clary’s Grove,
Sobre o que Abe Lincoln disse
Uma vez em Springfield.
(2) Um verbete de Manuel Bandeira, inserto em seu livro “Noções de
História da Literaturas”, diz: “EDGAR LEE
MASTERS (1869-1950) tornou-se famoso com a sua Spoon River Anthology, livro considerado um marco na poesia
norte-americana; são para mais de cem epitáfios em que os mortos de uma
cidadezinha do Oeste dizem a verdade sobre as suas vidas; e através dos
supostos depoimentos o lugarejo revive com todas as suas grandezas e misérias.”
-x-x-x-x-x-
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