terça-feira, 21 de maio de 2013


Falar de poesia

O primeiro foi descobrir um espaço vazio: simplesmente, alguma coisa faltava.

Mas, de repente, tudo podia dar uma guinada, as coisas, sem abandonar seu lugar, começavam a estar já noutro. Para mim, a poesia não estava no novo desconhecido, mas sim numa dimensão nova do conhecido, numa dimensão desconhecida do evidente. Então, tentava reconstruir, a partir daquele espaço vazio, o transluz entrevisto, anunciador. Relâmpago de tudo no fragmentário, aparecia e fechava , tal como o relâmpago.

Os espaços e vazios do verso refletiam muito bem aquele vazio, aquela irrupção. Um livro de verdadeira poesia detinha o encantamento.

Salvo naqueles instantes felizes de suas súbitas visitas, a beleza mesma parecia ter alguma limitação. O mar que tinha ante os olhos era somente aquele mar. No misterioso desejo, na nostalgia imprecisa, sentia maior intensidade de presença. O mar num verso de Keats se aproxima mais daquele mar total, bramador como o desejo ou a esperança. Estava perto e ao mesmo tempo longe, deixando escutar o “velho som escuro” explodindo lá onde a espuma, elevando-se contra os rochedos, rompia a cantar como o coro das ninfas. Para mim, a poesia, a vivente e a escrita, eram uma mesma, estava ali onde se reuniam os três tempos da presença, a saudade e o desejo, ultrapassando-os, acendendo sei lá qual sede.

Mais que no que tinha diante dos olhos, encontrava na memória esse poder maior de parar o sucessivo, bater no seu ombro e fazer-lhe voltar o rosto. Lembro que uma rua, na saída do colégio, uma rua lateral que dava para o mar, com uma grande árvore velha, que eu via todos os dias com indiferença, numa ocasião me provocou, na minha memória, uma sensação de bem-aventurança. Em sua nostalgia não havia desejo de retorno ao passado, mas sim uma promessa desconhecida: o desejo era como um desapego e a sensação de presença muito mais intensa que quando tive tudo diante dos olhos.

Como Cristo aos discípulos de Emaús, certa revelação do real somente me tem sido reconhecível ao preço de desaparecer.

Não posso dizer que fosse aquela uma paragem especialmente bela. Jamais tenho sentido a beleza como uma qualidade que possam ter ou não ter as coisas, mas sim como sua essência constante, que podem revelar-se ou não. É por isto que a poesia e “o poético” parecem-me, realmente, coisas antitéticas. O que encontro “poético” está já limitado por minha particular eleição ou propósito enfeitador.

É algo demasiado excludente, teimoso, temperamental. A beleza, ou é tudo, ou seria a mesma coisa que a injustiça.

Agora sinto menos que na adolescência esse império da memória e o desejo. O hoje humilde me parece o verdadeiro alimento. Pão nosso de cada dia, não o excepcional, mas sim o diário que não cansa, nem estraga e que sustenta. Viver nessa espécie de constante disparada do projeto incessante, miúdo ou magno, escamoteia muitas vezes o precioso. Que nenhum ato que realizemos no dia, nem ainda o mais modesto, seja mecânico. Que possamos fazer a cama com a mesma inspiração com que antes víamos o pôr do sol. A mulher que costura, a que acende o fogo, a que faz a faxina, também contribui para a ordem do mundo, para a caridade mais misteriosa: para a l uz. Isto não excluiu outras ordens e outras ordens de mais vasto alcance. Trata-se de resgatá-lo tudo, não só o que não possuímos ainda, senão o que possuíamos sem dar-nos conta. Trata-se também do serviço misterioso.

Não se deveria ter “uma” poética. Na poética pessoal deveriam entrar todas as poéticas possíveis. Que o sabiá o “o divino doutor” não se receiem mutuamente. Que a arte direta não exclua o velho preciosismo. A natureza cria a asa para o vôo mas, depois, a decora. O realismo verdadeiro deveria abranger o sonho e o não-sonho, o que tem um fim e o infinito, o cacharro doméstico e a Via Láctea. Nenhum outro realismo que o da misericórdia.

O humorista Cocteau disse uma das coisas mais lúcidas que se tem dito sobre poesia: eu sei que a poesia serve para algo, o que acontece é que não sei para quê. Alguns consideram Cocteau como um palhaço, mas a eles lembramos os sérios que são os palhaços e como, tantas vezes, têm sido os bufões os únicos que disseram a verdade ao rei.

Em todo poema verdadeiro há um elemento que escapa a seu criador. O fim da poesia, não importa sua bondade intrínseca, é pretender conhecer com antecedência os limites e conteúdo desse impulso necessariamente escuro em sua raiz; ignorar as exigências desse organismo tão delicado como desconhecido, cuja potência de visão, profecia ou conhecimento é tanto maior quanto menos possa ser manipulado por uma decisão sempre menos sábia que ele. O fim não opera na poesia, como em qualquer outra criação vivente, como opera numa máquina, que somente tem a matéria que necessita para conseguir seu objetivo. Uma criação vivente não é jamais o result ado de seus elementos formadores, mas sim esse espaço o qual se adiciona um número desconhecido. Assinalar o fim da poesia, por elevado que este seja, significa não compreender que o poeta tem de viver dentro dela como dentro de algo que o excede e não que ele manipula ao seu gosto, de maneira que se pode dizer que a poesia vive menos dentro dele que ele dentro da poesia, como pensou a velha teologia que não era a alma que estava dentro do corpo senão o corpo dentro da alma. Acontece que a poesia não é outra coisa que o segredo da vida, pelo que sempre vai escapar, é a noção de fim visível. O fim não é nela, como na máquina, o instante último de seu movimento, senão uma instância superior paralela, à espreita, julgando, enobrecendo, transparecendo o invisível.

Ninguém entenda com isto que defendemos a desacreditada “arte pela arte”, como se algo poderia constituir-se em fim em si próprio, sem negar a essência da caridade. Deveria cessar a envelhecida polêmica da arte pura e arte comprometida. Nem arte “pura” nem arte “para”. Somente a má intenção pode confundir o respeito para aqueles cujos fins nos são desconhecidos, com a desinteressante briga entre o mecânico e a instranscendência. A prosa, segundo Brull, se faz com o que conhecemos; a poesia, com o que desconhecemos. Imagino a poesia como a súbita captação daquilo que continuaria existindo, ainda que já não exista.

Poeta é esse estranho caçador que somente acerta no alvo quando o pássaro salta livre. Poesia é incorporar, não destruir, ter a suspeita de que aquele que não é como nós talvez tenha um segredo do nosso homem.
Se pudéssemos falar da poesia do mesmo modo como ela cala sua essência sem proclamação. Todo poeta sente, quando trabalha, que suas palavras são moldadas por um vazio que as esculpe, por um silêncio que se retira e ao mesmo tempo guia o fio do canto, e toda sua impotência e toda sua força consiste na necessidade de desalojar esse único hóspede necessário. O silêncio é na poesia, tal como na natureza, um meio de expressão. A poesia vive de silêncios, e o mais importante é, talvez, esse momento em que o pulso se detém e continua na linha abaixo. A prosa não se detém, não precisa dessa detenção, onde se encontra somente o que se rompe. P oesia palavreada não é poesia. Cintio sempre me lembra que a poesia não é dizê-lo tudo senão dizer metade, ou melhor, sugerir uma totalidade através dum limite. Certa arte ambiciosa que quer atingir o infinito sempre me produz um efeito muito pequeno. Deem-me o conhecimento dum limite e a mais simples frase melódica me pode levar da mão até o insondável.

No humano, sempre tenho sentido a poesia naqueles raros seres capazes de dar-nos alegria, que nem sempre são, necessariamente, os mais alegres. Ainda a existência melhor é tão trágica que a alegria sempre me tem parecido o mais comovedor, porque aquele que a entrega também é um pedinte. Gosto muito dessa bondade involuntária, capaz de sorrir na miséria, essa humildade dilacerante da alegria. O lar em que vivem, o lugar por onde passam seres assim ficam cheios de inspiração permanente. Chega com um raio dessa luz e o mal recua como ante um escudo.
Chaplin conta na sua biografia a forma em que sua mãe alegrava o escuro porão da rua Oakley onde viviam, comprando narcisos com o pouco dinheiro que ganhavam ou atuando para fazer imitações burlescas dos atores que viu trabalhar quando jovem, e nos conta que numa tarde, em que ele estava com febre, sua mãe começou a ler os relatos evangélicos, entre duas luzes, detendo-se somente para acender a lâmpada, e dessa forma acendeu nele a luz mais benigna que jamais conheceu no mundo, essa que deu luz a todas as grandes obras do teatro e a poesia: o amor, a compaixão, a humanidade.

Quem sabe de qual fonte modesta e desatendida o homem tira para sempre sua decisiva eleição do bem ou do mal, o desinteresse pelo menor descobrimento científico, ou seu ulterior sentido da beleza?

Que alta pedagogia que respeitasse o tempo livre, não programado, o único talvez em que se aprendem as coisas que não se aprendem!

O mesmo Chaplin conta sobre Londres, quando criança, sobre suas viagens sentado na carroça, junto a sua mãe; sobre os bilhetes laranja, azul e verde que cobriam o pavimento nas paredes dos ônibus e bondes; sobre os domingos melancólicos; sobre as floristas nas esquinas  da ponte de Westminster que faziam pequenos ramos para a lapela, “manipulando com seus dedos o papel de prata e a samambaia tremebunda”. E conclui: “Creio que minha alma nasceu destas coisas triviais”. Que poeta não poderia dizer outro tanto?

Há uma luz normal da vida que escapa a toda sublimação e que, contudo, é a mais sustentadora. Não se poderia assistir todas as manhãs a magnífica ária de Tristão e Isolda, e o humilde sabiá não nos cansa jamais. Somente um gênio poderia ter escrito Tristão, mas só um deus poderia ter criado a erva ou ensinado o pão nosso.

Se o triste enriquece, também contribui para a alegria. O que mais nos importa, nas coisas e, sobretudo, nas pessoas, não são suas ideias, seus propósitos, por elevados que estes sejam, senão sua essência mesma, o que emana delas involuntariamente, como o cheiro da resina no tronco.

Um professor fraco, um puritano, pode tornar aborrecível a moral a uma criança; no entanto, um palhaço pode despertar-lhe seu sentido do humor, da compaixão, da simpatia, da benevolência. As pessoas rezam involuntariamente para que estas coisas não desapareçam do mundo.

A literatura, o teatro, a novela, muitas vezes contribuíram para fazer atraente o erro, o crime, o absurdo, a profunda necessidade de transgressão que habita em todo homem. Somente a poesia tem o segredo da fidelidade ao ser e saber atravessar os limites sem destrui-los, como a luz o vidro.

A moral está muito mais desacreditada, todo seu vocabulário é inservível. “Honorável”, “honesto”, sugerem no jovem imagens de falsidade, limitação ou hipocrisia expressa. Ainda, a palavra “bom” resulta fraca, quando deveria ser uma palavra deslumbrante. As realidades opostas têm um vocabulário menos deformado e uma literatura sem dúvida superior, que não é estranho que resulte infelizmente mais atraente.

A infidelidade humana tem seu Tristão e Isolda e a divina sua parábola de filho pródigo. Nada semelhante conta a obediência e todas essas realidades que talvez tenham um nome muito mais belo que o que nos ensinaram, mas que toda a poesia do mundo parece insuficiente para expressar. A poesia deveria criar, de fato sempre está tentando criar outra linguagem. Menos importante que fazer dessa linguagem uma linguagem excepcional ou uma linguagem comum (cansa esse jogo fatal e segundo parece necessário das “reações a”), é que os dois lembram o que deveu ter sido a linguagem natural do homem. As mesmas palavras “grande”, “superior”, “excepc ional”, revelam um pequeno vocabulário, e qualquer que seja nossa incredulidade sobre uma queda teológica, de um cataclismo imemorial, chegaria com algumas gretas do idioma ou da simples beleza do rosto humano, para revelá-lo. Ao jovem literato que se sente mais para lá de certas envelhecidas categorias por um desdém, em boa parte legítimo, para a hipocrisia que ocultam, lembraríamos que se ao cortar a cizânia, cortam também o trigo, não vai ficar mais que fome sobre a terra.

O fato de que a poesia não seja um reino autônomo, “acima da moral”, e que o esteticismo à Wilde resulte hoje mais anacrônico do que perigoso ou mais desolado do que cínico, não significa uma burda programação, feita no seio do poema mesmo, onde a nobreza ou a veracidade da “tese” escuse de dar-lhe um tratamento mais profundo, mais iluminador das verdadeiras relações, acaso mais misteriosas, da moral e da poesia. Quando Keats crê ler na urna grega “Beauty is truth; truth is beauty” nos faz sentir com menos força a verdade e a beleza deste mistério primigênio que quando diz em seus versos: “Nada sei e, contudo, a tarde me escuta ��.

Nem os afastados “poetas malditos” do século 19, nem os “comprometidos” moralistas nos deixam somente suas próprias más ou boas intenções: a poesia as atravessa sempre, próximas do que o poeta pensa ou decide. Ela tenta e consegue outra aventura, e com suas mesmas palavras, conta outro conto: ela tem sua própria maneira de servir. A poesia não é o reino do “dever ser senão do ser”; daqui que toda programação, todo propósito, moral ou imoral, rebaixe a arte, com certa limitação. O moralizador esquece que comover, como expressou José Martí, é moralizar. A poesia talvez seja a moral do futuro, como a mais antiga, a que sempre nos tem educado e melhorado pela mãe, não através do que ela lhe diz senão do que não lhe diz. É essa poesia invisível que sustenta tudo: a ação mais pura e a mais pura contemplação. Sua fonte não se conhece: a bondade primeira, uma voz, um rosto, algo que, talvez tenhamos esquecido. A natureza é fonte de inspiração moral permanente.

Todos nós somos influídos, sem notá-lo, pela beleza natural que nos rodeia, as luzes que afundam, os amanheceres que voltam.

Todo poeta sabe que os poetas são os outros, os que não escrevem versos, e não só os servidores magnos (como recordava o poeta Barnet) senão ainda os mais humildes, a irmã que cose no outro quarto, o ar fresco que entra cada manhã quando abrimos a porta, o canário no balcão. Uma mulher que pensa que é bela. Da mesma forma, ninguém poderia sentir-se poeta senão por esse único ponto em que deixa de sê-lo, e talvez somente tenhamos sido verdadeiros poetas nos raros instantes em que não nos demos conta disso.

Pensei iniciar estas palavras dizendo que eu não sei o que é a poesia. mas depois da famosa frase do mais sábio dos homens, temo que esta seja uma declaração muito arrogante. Com 17 anos eu sabia muitas coisas mais sobre poesia. Como qualquer jovem ignorante, sabia, naturalmente, tudo. Lembro que escrevi um tratado de 40 páginas, do qual agora teria podido valer-me, se não fosse porque um pobre homem, aproveitando minha distração, roubou-o e a bolsa que continha um trabalho grande que somente pude reconstruir em parte. Infelizmente para mim e para essa pessoa, na bolsa tinha somente cinco centavos. Sempre compadeci aquele gatuno que pensou encontr ar algo para aliviar sua miséria e somente encontrou uma arrogante dissertação sobre a poesia. Com que aborrecimento tiraria meus papeis num canto. Poesia seria para ele um prato de sopa bem quente, um colchão novo, um abrigo. Muitas vezes imaginei o miserável quarto onde deveria ter aberto seu desolado tesouro e me senti amaldiçoada por aquele desconhecido que esperava, sem dúvida, outra coisa melhor. Poder reparar, finalmente, esse erro, não defraudar de novo essa esperança, eu sinto que é a única coisa que nos daria a todos o direito para voltar a falar de poesia.

 Caderno de Cultura – Jornal Granma – 21/5/2013

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