sábado, 6 de setembro de 2014

Médicos e loucos

(*) Rinaldo Barros 
Escritor e professor    
Faz dias que estou assuntando sobre uma questão que pode “comprar” uma encrenca grande, principalmente com a esfera dos que pensam e praticam a Psiquiatria.
Espero ser compreendido, antes de decidirem pelo meu internamento.
Nesta conversa, quero colocar em debate a inconsistência e incoerência de considerar a doença mental como “problema individual”, com diagnóstico exclusivamente médico.
            Tomemos como exemplo a esquizofrenia, uma das doenças mentais mais conhecidas pela maioria (leiga) da população. Pois bem, a esquizofrenia nunca (eu disse nunca) foi definida através de qualquer comprovação da histopatologia ou patofisiologia, ciências que estudam, definem e classificam as doenças.
            A esquizofrenia é definida como síndrome. O que é uma síndrome?
            De acordo com Thomas S Szasz (psiquiatra húngaro, radicado nos Estados Unidos - 1920 a 2012), em seu texto “O Mito da Doença Mental”, síndrome é um grupo de sinais ou sintomas que ocorrem em conjunto e caracterizam uma doença.
Ou seja, trata-se nada mais do que outro ardil psicossemântico para afirmar que uma “doença” sem lesão hispatológica ou anormalidade patofisiológica demonstrável é, apesar disso - mesmo assim - uma doença (com estatuto médico).
Aquilo a que os donos do saber psiquiátrico se referem como “sintoma” é apenas um conjunto complexo de justificações morais e legais para isolar alguém que está incomodando de alguma forma ou em algum lugar.
Na base das justificativas psiquiátricas (científicas) está o conceito de loucura bioclássico: “a doença mental está dentro do indivíduo, é um problema individual”.
Para se iniciar uma transformação consistente, uma das providências mais urgentes é a construção de um novo conceito que tenha condições de ser aceito e posto em prática. Não adianta simplesmente negar que as doenças mentais existem, que são puras etiquetas, etc. Elas existem concretamente e se manifestam através da alteração do psiquismo ou do sistema nervoso central.
É preciso construir e propor uma outra abordagem teórica, onde a doença mental seja considerada como fenômeno social (e não como codificação do CID, editada pela OMS), explicando as diversas e complexas relações (objetivas e subjetivas) envolvidas no seu processo de surgimento.
Uma conceituação de doença mental com a qual somos tendentes a concordar é aquela explicitada pelo professor Luis Meyer, da UnB (Brasília-DF):
Ensina Meyer que “no campo onde se desenvolve a intersubjetividade, loucura e razão não são excludentes, mas formam um par cambiante”.
Quer dizer que, na lógica do inconsciente, loucura e razão são apenas momentos dentro da dinâmica viva do processo de existência do ser humano no mundo. Significa afirmar que estamos sempre em disponibilidade face a...loucura ou razão.
Lembremo-nos, entretanto, que o quadro real é ainda mais complicado que o simples enunciado de um conceito e sua aplicação.
Temos questões sociais concretas difíceis a enfrentar: estereótipos, estigmas e tabus são alguns dos fenômenos gerados no seio das formações sociais, com variações no espaço e no tempo.
Pergunto eu: uma “doença” resultante fundamentalmente da interação sociocultural povoada por relações sociais e/ou subjetivas tensas, estressadas, deterioradas, hierarquizadas, contraditórias, poderá ser “tratada”, competentemente, através de terapêuticas medicamentosas ou de manutenção (cirurgias, eletrochoques, choque insulínico, entre outras)? Ou esse “tratamento” é apenas um paliativo, e uma confissão de impotência frente a complexidade da questão?
Para terminar, deixo aqui uma reflexão para o caro leitor.
            Em princípio, consideramos que a questão da loucura é subjacente à questão da Liberdade individual, em seu mais amplo sentido. Não em suas circunstâncias de surgimento, mas em sua estruturação, enquanto inadequação das necessidades psíquicas da pessoa ao contexto (época, lugar e normas) em que vive.
            Se a concepção e prática médica, com a intenção de enfrentar e tratar o problema, limita ainda mais essa individualidade (problemática) através de medicamentos e/ou do internamento, sem querer e imbuída das melhores intenções - objetivamente, não estará atendendo a uma necessidade humana, ao prestar esse serviço.
            Este “tratamento” não considera que, na vida, “às vezes é preciso enlouquecer para sobreviver”.
           
                (*) Rinaldo Barros é professor – rb@opiniaopolitica.com

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